Uma maratona musical chamada Abril Pro Rock

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(Crédito: Marcos Hermes)

 

Daniel Sanes, de Recife

Sempre tive muita curiosidade em relação ao Abril Pro Rock. Um festival de rock’n’roll no nordeste brasileiro? Não conseguia imaginar como seria. Era 1993 quando o evento surgiu, praticamente apresentando o mangue beat ao mundo. Só por isso, já merece seu lugar na história.

Mais de 20 anos depois, surge a oportunidade de presenciar uma edição do festival recifense. Embora sempre haja reclamações dos nostálgicos, lamentando que o Abril Pro Rock perdeu a essência, ele mantém sua relevância no cenário nacional, apresentando ao público nomes que estão despontando no underground, resgatando grandes artistas do passado e ainda trazendo algumas atrações gringas pouco usuais. Enfim, um evento em que a música está acima de tudo – inclusive das selfies.

Em 2015, foram nada menos que 25 atrações divididas em três noites: a primeira, em 18 de abril, no Baile Perfumado, foi dedicada à cena pernambucana; a segunda, dia 24, no Chevrolet Hall, misturou psicodelia e pop rock; e a terceira, dia 25, no mesmo espaço, foi de som mais pesado, indo do punk ao metal. Para receber tanta gente sem deixar o público cansado, uma estrutura impecável foi montada, com os artistas se revezando em dois palcos. Assim, quando um show se encerrava, o próximo começava quase que imediatamente depois. Acredite, era preciso escolher entre ir ao banheiro ou pegar uma cerveja; caso contrário, o risco de perder alguma coisa era grande.

Noite dos pernambucanos

O Baile Perfumado, uma casa noturna com condições de abrigar quase cinco mil pessoas, recebeu um público muito aquém de sua capacidade na noite de abertura. Uma pena, já que o cast, todo formado por artistas pernambucanos, era bastante respeitável.

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Performático, Almério foi um dos destaques da noite com artistas locais, no Baile Perfumado (Crédito: Simony Rodrigues/Agência Pavio)

Já o clima era de reverência a algumas lendas do underground setentista, como Flaviola, Paulo Diniz e Ave Sangria. Diniz, com a voz um pouco debilitada, apostou em dois grandes sucessos para ganhar o público: a popularíssima “Pingos de Amor”, cantada até em estádios de futebol, e “Quero Voltar pra Bahia”, hino em homenagem aos artistas exilados durante a ditadura, tocada na abertura e no início do show.

Já Flaviola parecia não acreditar que estava tocando no Abril Pro Rock. Lembrou ao público que tinha uma carreira além do único disco lançado com o Bando do Sol, em 1974, e lamentou o ostracismo a que foi relegado, mas fez as pazes com o público de seu estado natal – ele estava radicado no Rio de Janeiro, fazendo trilhas de peças de teatro sob o nome de batismo, Flávio de Lira. “Quando eu tocava aqui no Recife, não tinha público”, disse.

Um pouco mais hypada pelos relançamentos em vinil de seu único disco de estúdio e do ao vivo Perfumes e Baratchos, a Ave Sangria encerrou a noite com uma apresentação que fez jus às expectativas, mostrando que pode retomar a carreira e, finalmente, levar sua música a outras regiões do Brasil.

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Mesmo sem disco gravado, Aninha Martins já se destaca na nova cena pernambucana (Crédito: Simony Rodrigues/Agência Pavio)

Mas quem roubou a cena mesmo foram os novatos. Em um palco menor, Caapora, Almério e Aninha Martins mostraram um vigor impressionante, e as apresentações performáticas dos dois últimos deixaram o povo simplesmente embasbacado. A banda Caapora abriu os trabalhos com um show dançante e psicodélico, uma mistura de estilos que deu a tônica da noite. Com visual marcante, dramaticidade a la Ney Matogrosso e voz quase tão aguda quanto à do eterno vocalista do Secos e Molhados, Almério merece ganhar projeção nacional. É o mesmo caso de Aninha Martins, uma daquelas artistas da qual não se consegue desgrudar o olho quando está no palco. A moça às vezes parecia estar possuída e, quando você menos esperava, soltava um berro gutural de dar inveja a Max Cavalera. Incrível que uma cantora desse naipe ainda não tenha um registro em estúdio de suas músicas, nem um EPzinho sequer!

Underground e mainstream

No Chevrolet Hall, o Abril Pro Rock tomou as proporções de um megafestival. A moderna casa de shows, situada na divisa de Olinda com Recife, possui capacidade estimada para 18 mil pessoas. Embora o festival não tenha atingido essa lotação em nenhum dos dias, contou com um público considerável, especialmente na noite mais pop. Pop até ali, é bom que se diga.

Coube aos pernambucanos do Kalouv, com seu intrincado som instrumental, fazer o aquecimento da segunda noite, abrindo caminho para o esperado Far From Alaska. Com um bom disco de estreia, modeHuman, lançado no ano passado, a banda potiguar mandou ver no seu rock classudo. Carismática, a vocalista Emmily Barreto não se intimidou diante da multidão e mostrou ser uma frontwoman de respeito.

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Emmily Barreto, do Far From Alaska, mostrando toda a fúria do rock potiguar (Crédito: Marcos Hermes)

Com um vasto portfólio de shows fora do Brasil, a goiana Boogarins manteve o público aceso com um rock embebido em psicodelia e uma apresentação mais do que redonda. Quem só conhece o disco de estreia, As Plantas que Curam, não faz ideia de como são esses caras no palco, pois o álbum não consegue captar 100% a energia deles. Se conseguirem transmitir isso no próximo, será genial.

A ideia de escalar artistas gringos pouco conhecidos é louvável, pois essa é uma das grandes vantagens desse tipo de festival: apresentar coisas bacanas para o público. Há o risco de alguém ser recebido com apatia, como no caso do The Shivas. Com um som bastante calcado na surf music, a banda de Portland, nos Estados Unidos, fez um show animado e dançante, mas não o suficiente para chamar a atenção da maioria, ansiosa pelas atrações principais.

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Com repertório redondo e cheio de hits, a cantora baiana Pitty fez um grande show no Chevrolet Hall (Crédito: Marcos Hermes)

Mais calejados em lidar com esse tipo de situação e quase 20 anos depois de sua primeira apresentação no Abril Pro Rock, os belgas do dEUS ligaram o foda-se e fizeram uma apresentação impecável. Ainda que parte da plateia tenha ficado indiferente, os caras conseguiram levantar a massa com uma mescla de estilos que torna seu som único. O hit “Suds and Soda”, guiado por um riff de violino (!), sacudiu o Chevrolet Hall, encerrando um baita show.

Com disco novo na praça (Não Pare pra Pensar) depois de anos sem lançar nada inédito, o Pato Fu já subiu ao palco com a noite ganha. Utilizando-se de bons efeitos de luz e interação com o telão, os mineiros fizeram um set calcado em seus incontáveis hits, intercalados por músicas do trabalho mais recente. O carisma do casal Fernanda Takai/John Ulhoa se sobressai, e a mistura de pop com sons mais experimentais, recorrente na carreira do grupo, dá a tônica da apresentação. O destaque, claro, fica para as músicas mais acessíveis, como “Depois” e “Perdendo Dentes”, assim como o primeiro hit da banda, “Sobre o Tempo”.

Para encerrar a noite, Pitty, um dos grandes nomes do rock nacional atualmente. A cantora baiana, cuja qualidade artística é questionada com frequência na imprensa especializada, responde aos críticos da melhor forma possível: com um belo show. Diante do palco, é impossível negar que Pitty é uma artista talentosa, com um repertório considerável (já tem quatro discos na bagagem, além do projeto Agridoce) e muitos hits nas rádios. Quem consegue isso hoje no rock nacional? Sua voz poderosa é acompanhada em coro, especialmente por meninas que cresceram ouvindo a cantora. Há espaço para canções de todos os discos, com destaque para Sete Vidas, cuja faixa-título abre a apresentação e a última, “Serpente”, encerra. Um show para abrir mentes e ouvidos.

Maratona de peso

A chamada noite dos camisas pretas também teve um grande público, com excursões vindas de diversos estados da região. Não é à toa: o nordeste ainda é carente de um circuito de shows internacionais de rock pesado, e Recife acaba se tornando o ponto de encontro para o pessoal do punk/hardcore/metal. Felizmente, o convívio entre as diversos tribos da música extrema é pacífico.

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Hardcore do Dead Fish foi uma das principais atrações da chamada “noite dos camisas pretas” (Crédito: Juarez Ventura/Agência Pavio)

Ao contrário dos outros dias, em que as apresentações tiveram início depois das 22h e das 21h, respectivamente, a “maratona” começou em torno das 18h30min. Compreensível, já que havia 12 bandas na programação…

O aquecimento ficou por conta da pernambucana Lepra, que, com seu grindcore brutal (redundância?), já levantou as primeiras rodas de pogo. Em seguida, foi a vez da Cätärro (sim, com tremas!), do Rio Grande do Norte, que levou o peso às raias do absurdo. A performance do vocalista Pedro, com contorcionismos a la Jello Biafra (ex-Dead Kennedys) é o destaque, além dos discursos políticos, desconexos mas repletos de sentido. O death metal do Hate Embrace veio depois, injetando, por incrível que pareça, um pouco mais de melodia – cortesia dos teclados comandados por Tamyris Daksha. O mais bacana é que, apesar do estilo extremo, o grupo aposta na temática regional: seu disco mais recente, Sertão Saga, fala sobre a história de Lampião.

Única representante do metal melódico/power metal da noite, a banda Almah tocou mais cedo do que o previsto para poder embarcar para Natal, onde teria outro show no dia seguinte. O vocalista Edu Falaschi mostrou bom desempenho, ao contrário de há alguns anos atrás, quando estava no Angra e precisou forçar a garganta para alcançar agudos elevadíssimos, sofrendo sérios problemas nas cordas vocais. Mesmo assim, arriscou o gogó e mandou (bem) “Heroes of Sand”, de sua antiga banda.

A seguir, foi a vez do principal – na verdade, único – representante do “saravá metal”. Ícone do underground carioca nos anos 90, a Gangrena Gasosa causou impacto já na apresentação de seus integrantes, vestidos de malandro a exu-caveira. O som, um black metal em português com letras sarcásticas, conseguiu arrancar sorrisos dos headbangers mais carrancudos. E os caras estavam realmente emocionados por fazerem seu primeiro show no nordeste.

O death do Head Hunter D.C., da Bahia, e o thrash modernoso do Project 46, de São Paulo, mantiveram o público empolgado, mas logo os fãs de metal tiveram uma trégua e abriram a pista para o pessoal do hardcore conferir o show do Dead Fish. Lançando o disco Vitória, os capixabas demonstraram a energia de sempre, garantindo o maior número de moshs por minuto do festival. Porém, o som estava embolado no início, e em alguns momentos era difícil ouvir o vocalista Rodrigo.

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Black metal da banda sueca Marduk encerrou a última noite do festival (Crédito: Juarez Ventura/Agência Pavio)

A próxima atração foi o Ratos de Porão. João Gordo e cia. fizeram o show de sempre (mas que é sempre imperdível), exaurindo as últimas forças dos camisas pretas. Ao menos é o que pareceu, já que nos seguintes havia gente dormindo nas escadarias do Chevrolet Hall. Isso meio que prejudicou o Câmbio Negro HC, que recentemente retomou as atividades em comemoração aos 25 anos do disco Espelho dos Deuses. Os pernambucanos sentiram que o público estava cansado, mas seguiram a pancadaria sem piedade.

Os famigerados problemas de som ressurgiram durante a apresentação do Coroner. O suíços, que fazem um thrash metal extremamente técnico, pareciam incomodados com o público, totalmente exausto, mas, principalmente, com o retorno de áudio. A certa altura, o guitarrista Tommy “T. Baron” Vetterli simplesmente deixou o palco resmungando. O vocalista e baixista Ron “Royce” Broder e o batera Diego Rapacchietti mostraram mais profissionalismo, executando a última música mesmo sem guitarra.

Os suecos do Marduk, um dos maiores expoentes do black metal, não se incomodaram com o público reduzido e encerraram o Abril Pro Rock com uma apresentação competente, repleta de dramaticidade. Praticamente não havia pausa entre as músicas, já que a banda utiliza-se de som ambiente e ruídos nos intervalos, dando uma atmosfera soturna ao local, condizente com o corpse paint e a música da banda.

Ainda que com falhas técnicas (problemas de áudio sempre existiram e, aparentemente, sempre existirão), o Abril Pro Rock é essencial para a cena do nordeste. Com preços justos (os ingressos custavam entre R$ 30 e R$ 60) e uma infraestrutura de dar inveja a eventos maiores – bebida e comida a preços aceitáveis, banheiros em quantidade suficiente, grande oferta de camisetas e acessórios de bandas, estandes de discos, entre outras coisas –, o festival ainda é exemplo para iniciativas semelhantes no resto do país.

 

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