Daniel Sanes, de Recife
Sempre tive muita curiosidade em relação ao Abril Pro Rock. Um festival de rock’n’roll no nordeste brasileiro? Não conseguia imaginar como seria. Era 1993 quando o evento surgiu, praticamente apresentando o mangue beat ao mundo. Só por isso, já merece seu lugar na história.
Mais de 20 anos depois, surge a oportunidade de presenciar uma edição do festival recifense. Embora sempre haja reclamações dos nostálgicos, lamentando que o Abril Pro Rock perdeu a essência, ele mantém sua relevância no cenário nacional, apresentando ao público nomes que estão despontando no underground, resgatando grandes artistas do passado e ainda trazendo algumas atrações gringas pouco usuais. Enfim, um evento em que a música está acima de tudo – inclusive das selfies.
Em 2015, foram nada menos que 25 atrações divididas em três noites: a primeira, em 18 de abril, no Baile Perfumado, foi dedicada à cena pernambucana; a segunda, dia 24, no Chevrolet Hall, misturou psicodelia e pop rock; e a terceira, dia 25, no mesmo espaço, foi de som mais pesado, indo do punk ao metal. Para receber tanta gente sem deixar o público cansado, uma estrutura impecável foi montada, com os artistas se revezando em dois palcos. Assim, quando um show se encerrava, o próximo começava quase que imediatamente depois. Acredite, era preciso escolher entre ir ao banheiro ou pegar uma cerveja; caso contrário, o risco de perder alguma coisa era grande.
Noite dos pernambucanos
O Baile Perfumado, uma casa noturna com condições de abrigar quase cinco mil pessoas, recebeu um público muito aquém de sua capacidade na noite de abertura. Uma pena, já que o cast, todo formado por artistas pernambucanos, era bastante respeitável.
Já o clima era de reverência a algumas lendas do underground setentista, como Flaviola, Paulo Diniz e Ave Sangria. Diniz, com a voz um pouco debilitada, apostou em dois grandes sucessos para ganhar o público: a popularíssima “Pingos de Amor”, cantada até em estádios de futebol, e “Quero Voltar pra Bahia”, hino em homenagem aos artistas exilados durante a ditadura, tocada na abertura e no início do show.
Já Flaviola parecia não acreditar que estava tocando no Abril Pro Rock. Lembrou ao público que tinha uma carreira além do único disco lançado com o Bando do Sol, em 1974, e lamentou o ostracismo a que foi relegado, mas fez as pazes com o público de seu estado natal – ele estava radicado no Rio de Janeiro, fazendo trilhas de peças de teatro sob o nome de batismo, Flávio de Lira. “Quando eu tocava aqui no Recife, não tinha público”, disse.
Um pouco mais hypada pelos relançamentos em vinil de seu único disco de estúdio e do ao vivo Perfumes e Baratchos, a Ave Sangria encerrou a noite com uma apresentação que fez jus às expectativas, mostrando que pode retomar a carreira e, finalmente, levar sua música a outras regiões do Brasil.
Mas quem roubou a cena mesmo foram os novatos. Em um palco menor, Caapora, Almério e Aninha Martins mostraram um vigor impressionante, e as apresentações performáticas dos dois últimos deixaram o povo simplesmente embasbacado. A banda Caapora abriu os trabalhos com um show dançante e psicodélico, uma mistura de estilos que deu a tônica da noite. Com visual marcante, dramaticidade a la Ney Matogrosso e voz quase tão aguda quanto à do eterno vocalista do Secos e Molhados, Almério merece ganhar projeção nacional. É o mesmo caso de Aninha Martins, uma daquelas artistas da qual não se consegue desgrudar o olho quando está no palco. A moça às vezes parecia estar possuída e, quando você menos esperava, soltava um berro gutural de dar inveja a Max Cavalera. Incrível que uma cantora desse naipe ainda não tenha um registro em estúdio de suas músicas, nem um EPzinho sequer!
Underground e mainstream
No Chevrolet Hall, o Abril Pro Rock tomou as proporções de um megafestival. A moderna casa de shows, situada na divisa de Olinda com Recife, possui capacidade estimada para 18 mil pessoas. Embora o festival não tenha atingido essa lotação em nenhum dos dias, contou com um público considerável, especialmente na noite mais pop. Pop até ali, é bom que se diga.
Coube aos pernambucanos do Kalouv, com seu intrincado som instrumental, fazer o aquecimento da segunda noite, abrindo caminho para o esperado Far From Alaska. Com um bom disco de estreia, modeHuman, lançado no ano passado, a banda potiguar mandou ver no seu rock classudo. Carismática, a vocalista Emmily Barreto não se intimidou diante da multidão e mostrou ser uma frontwoman de respeito.
Com um vasto portfólio de shows fora do Brasil, a goiana Boogarins manteve o público aceso com um rock embebido em psicodelia e uma apresentação mais do que redonda. Quem só conhece o disco de estreia, As Plantas que Curam, não faz ideia de como são esses caras no palco, pois o álbum não consegue captar 100% a energia deles. Se conseguirem transmitir isso no próximo, será genial.
A ideia de escalar artistas gringos pouco conhecidos é louvável, pois essa é uma das grandes vantagens desse tipo de festival: apresentar coisas bacanas para o público. Há o risco de alguém ser recebido com apatia, como no caso do The Shivas. Com um som bastante calcado na surf music, a banda de Portland, nos Estados Unidos, fez um show animado e dançante, mas não o suficiente para chamar a atenção da maioria, ansiosa pelas atrações principais.
Mais calejados em lidar com esse tipo de situação e quase 20 anos depois de sua primeira apresentação no Abril Pro Rock, os belgas do dEUS ligaram o foda-se e fizeram uma apresentação impecável. Ainda que parte da plateia tenha ficado indiferente, os caras conseguiram levantar a massa com uma mescla de estilos que torna seu som único. O hit “Suds and Soda”, guiado por um riff de violino (!), sacudiu o Chevrolet Hall, encerrando um baita show.
Com disco novo na praça (Não Pare pra Pensar) depois de anos sem lançar nada inédito, o Pato Fu já subiu ao palco com a noite ganha. Utilizando-se de bons efeitos de luz e interação com o telão, os mineiros fizeram um set calcado em seus incontáveis hits, intercalados por músicas do trabalho mais recente. O carisma do casal Fernanda Takai/John Ulhoa se sobressai, e a mistura de pop com sons mais experimentais, recorrente na carreira do grupo, dá a tônica da apresentação. O destaque, claro, fica para as músicas mais acessíveis, como “Depois” e “Perdendo Dentes”, assim como o primeiro hit da banda, “Sobre o Tempo”.
Para encerrar a noite, Pitty, um dos grandes nomes do rock nacional atualmente. A cantora baiana, cuja qualidade artística é questionada com frequência na imprensa especializada, responde aos críticos da melhor forma possível: com um belo show. Diante do palco, é impossível negar que Pitty é uma artista talentosa, com um repertório considerável (já tem quatro discos na bagagem, além do projeto Agridoce) e muitos hits nas rádios. Quem consegue isso hoje no rock nacional? Sua voz poderosa é acompanhada em coro, especialmente por meninas que cresceram ouvindo a cantora. Há espaço para canções de todos os discos, com destaque para Sete Vidas, cuja faixa-título abre a apresentação e a última, “Serpente”, encerra. Um show para abrir mentes e ouvidos.
Maratona de peso
A chamada noite dos camisas pretas também teve um grande público, com excursões vindas de diversos estados da região. Não é à toa: o nordeste ainda é carente de um circuito de shows internacionais de rock pesado, e Recife acaba se tornando o ponto de encontro para o pessoal do punk/hardcore/metal. Felizmente, o convívio entre as diversos tribos da música extrema é pacífico.
Ao contrário dos outros dias, em que as apresentações tiveram início depois das 22h e das 21h, respectivamente, a “maratona” começou em torno das 18h30min. Compreensível, já que havia 12 bandas na programação…
O aquecimento ficou por conta da pernambucana Lepra, que, com seu grindcore brutal (redundância?), já levantou as primeiras rodas de pogo. Em seguida, foi a vez da Cätärro (sim, com tremas!), do Rio Grande do Norte, que levou o peso às raias do absurdo. A performance do vocalista Pedro, com contorcionismos a la Jello Biafra (ex-Dead Kennedys) é o destaque, além dos discursos políticos, desconexos mas repletos de sentido. O death metal do Hate Embrace veio depois, injetando, por incrível que pareça, um pouco mais de melodia – cortesia dos teclados comandados por Tamyris Daksha. O mais bacana é que, apesar do estilo extremo, o grupo aposta na temática regional: seu disco mais recente, Sertão Saga, fala sobre a história de Lampião.
Única representante do metal melódico/power metal da noite, a banda Almah tocou mais cedo do que o previsto para poder embarcar para Natal, onde teria outro show no dia seguinte. O vocalista Edu Falaschi mostrou bom desempenho, ao contrário de há alguns anos atrás, quando estava no Angra e precisou forçar a garganta para alcançar agudos elevadíssimos, sofrendo sérios problemas nas cordas vocais. Mesmo assim, arriscou o gogó e mandou (bem) “Heroes of Sand”, de sua antiga banda.
A seguir, foi a vez do principal – na verdade, único – representante do “saravá metal”. Ícone do underground carioca nos anos 90, a Gangrena Gasosa causou impacto já na apresentação de seus integrantes, vestidos de malandro a exu-caveira. O som, um black metal em português com letras sarcásticas, conseguiu arrancar sorrisos dos headbangers mais carrancudos. E os caras estavam realmente emocionados por fazerem seu primeiro show no nordeste.
O death do Head Hunter D.C., da Bahia, e o thrash modernoso do Project 46, de São Paulo, mantiveram o público empolgado, mas logo os fãs de metal tiveram uma trégua e abriram a pista para o pessoal do hardcore conferir o show do Dead Fish. Lançando o disco Vitória, os capixabas demonstraram a energia de sempre, garantindo o maior número de moshs por minuto do festival. Porém, o som estava embolado no início, e em alguns momentos era difícil ouvir o vocalista Rodrigo.
A próxima atração foi o Ratos de Porão. João Gordo e cia. fizeram o show de sempre (mas que é sempre imperdível), exaurindo as últimas forças dos camisas pretas. Ao menos é o que pareceu, já que nos seguintes havia gente dormindo nas escadarias do Chevrolet Hall. Isso meio que prejudicou o Câmbio Negro HC, que recentemente retomou as atividades em comemoração aos 25 anos do disco Espelho dos Deuses. Os pernambucanos sentiram que o público estava cansado, mas seguiram a pancadaria sem piedade.
Os famigerados problemas de som ressurgiram durante a apresentação do Coroner. O suíços, que fazem um thrash metal extremamente técnico, pareciam incomodados com o público, totalmente exausto, mas, principalmente, com o retorno de áudio. A certa altura, o guitarrista Tommy “T. Baron” Vetterli simplesmente deixou o palco resmungando. O vocalista e baixista Ron “Royce” Broder e o batera Diego Rapacchietti mostraram mais profissionalismo, executando a última música mesmo sem guitarra.
Os suecos do Marduk, um dos maiores expoentes do black metal, não se incomodaram com o público reduzido e encerraram o Abril Pro Rock com uma apresentação competente, repleta de dramaticidade. Praticamente não havia pausa entre as músicas, já que a banda utiliza-se de som ambiente e ruídos nos intervalos, dando uma atmosfera soturna ao local, condizente com o corpse paint e a música da banda.
Ainda que com falhas técnicas (problemas de áudio sempre existiram e, aparentemente, sempre existirão), o Abril Pro Rock é essencial para a cena do nordeste. Com preços justos (os ingressos custavam entre R$ 30 e R$ 60) e uma infraestrutura de dar inveja a eventos maiores – bebida e comida a preços aceitáveis, banheiros em quantidade suficiente, grande oferta de camisetas e acessórios de bandas, estandes de discos, entre outras coisas –, o festival ainda é exemplo para iniciativas semelhantes no resto do país.