Quilombo do Areal da Baronesa e a Festa do Preto Velho

Fotos Ita Pritsch

Na umbanda, o Preto Velho é uma das figuras mais populares entre os praticantes da religião. Negro, de cabelos brancos, com seu cachimbo, e uma prosa leve, ele representa a experiência. Os conselhos do ancião são ouvidos atentamente, pois vêm de um ser curvado pelos anos. No período colonial, um escravo não sobrevivia muito mais do que dez anos de trabalho por diversos fatores, como o cansaço, desgaste e maus tratos. Logo, aquele que conseguisse ficar vivo, mesmo com essas condições, receberia o devido respeito. Como a base da religião afrodescendente é a reverência aos seus ancestrais, a Festa do Preto Velho é uma celebração muito forte para quem compactua com essa crença.

No último sábado (18), a Comunidade Quilombola do Areal realizou a Festa do Preto Velho pela segunda vez em seus domínios. Localizado em uma rua sem saída, no bairro Menino Deus, o quilombo do Areal possui uma história semelhante à de seu homenageado. Um exemplo de humildade, simplicidade e conquista de respeito com o passar do tempo. Um celeiro de cultura negra em Porto Alegre.

Tudo começou quando João Baptista (1797-1853) e Maria Emília (1802-1888), respectivos Barão e Baronesa de Gravataí (Gravathay, antigamente), construíram uma casa de veraneio às margens do Guaíba. Além da casa principal, também foram construídas estribarias, espaço divido entre animais e escravos. Com a morte dos barões, os escravos continuaram a morar ali, e cumprindo com suas rotinas. Esse cotidiano mudou quando um caixeiro-viajante italiano apareceu por lá, era Luiz Guaranha. Ele reformou os casebres e passou a cobrar aluguel dos moradores. O tempo passou e o nome do “dono” das casas virou a referência para o local. Desde então, o Quilombo do Areal da Baronesa se desenvolveu na Avenida Luiz Guaranha, próximo do cruzamento entre as ruas Baronesa do Gravataí e Barão do Gravataí.

Festa profana

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O Preto Velho é conhecido por ficar sentado, fumando seu cachimbo de barro ou um cigarro de palha

O carnaval é um dos símbolos do Brasil. Todo brasileiro entende que aqueles quatro dias de verão, em fevereiro ou em março, significam festa. Nem todos comemoram, mas de alguma maneira aproveitam. Os blocos de rua foram os precursores, mas, hoje em dia, os desfiles das escolas de samba são os carros-chefes. A Avenida Marquês de Sapucaí, no Rio de Janeiro, vira o principal ponto turístico do país. E a cultura apresentada na passarela do samba durante as noites é a negra.

Em 2009, a Beija-Flor de Nilópolis foi vice-campeã do carnaval carioca com o tema “No chuveiro da alegria, quem banha o corpo lava a alma na folia”. O enredo conta a história de diversos tipos de banho, como o banho de axé. Uma parte desse samba-enredo (No chuveiro da alegria/Salve as águas de Oxalá/Embala eu, Babá) tem uma conexão com a festa do preto mais carismático do terreiro (Hoje é dia de festa no terreiro do meu pai/Saravá meu vôvô Chico que ele é o nosso pai/Embala eu, Babá Embala eu). “Babá” é um dos termos para chamar o sacerdote das religiões afro, também conhecidos como babaloxá, babalorixá, pai de terreiro e pai de santo. A segunda canção, presente na Festa do Preto Velho, é chamada de ponto, uma das preces em forma de música da religião.

Entre as décadas de 1930 e 1940, o Areal da Baronesa foi um dos pilares do carnaval de rua de Porto Alegre. A Imperadores do Samba, uma das grandes campeãs da Capital, é exemplo derivado do bloco do Areal. O primeiro Rei Momo negro da cidade foi morador da comunidade. Adão Alves de Oliveira, o Lelé (1925-2013), reinou de 1949 a 1952, e ficou conhecido como “Rei Negro”. Além disso, de 1995 a 2003, a escola de samba Integração do Areal da Baronesa representou os moradores da Luiz Guaranha. A escola foi campeã do Grupo de Acesso em 1995, e ganhou o Intermediário-B em 1996.

Como a febre dos blocos de rua voltou, o Areal não ficou de fora. Desde 2004 realiza um projeto com as crianças da comunidade, o Areal do Futuro. Cerca de 70 jovens participam da iniciativa, divididos em ritmistas e dançarinos. Para quem pensa que a ideia é apenas para ocupar as crianças, está enganado. “Nós somos os únicos que eram uma escola, e viraram um bloco, porque normalmente é o contrário”, brinca Cleusa Astigarraga, presidente do Areal do Futuro. Ela toca o projeto junto de Paulo César Silveira e Daniel Roves. Há oito anos, a bateria do bloco Maria do Bairro, que levou mais de 20 mil foliões às ruas em 2015, é composta por integrantes do Areal do Futuro. Outros blocos porto-alegrenses contaram com a ajuda dos jovens do Areal, o Bloco da Rua do Perdão, o Bloco do Isopor e o Bloco do Fusca Azul.

Festa quilombola

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Fabiane Xavier é da quarta geração de moradores do Quilombo do Areal

Tolerância e sapiência são características do Preto Velho. Um modelo de quem teve de sobreviver com as dificuldades por um longo tempo, e mesmo assim, não carrega rancor consigo. O Quilombo do Areal lutou por mais de 10 anos pela sua titulação e se tornou Área Especial de Interesse Cultural. Os procedimentos para reconhecimento oficial de terras quilombolas são burocráticos e dependem da esfera estadual e da federal. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) é o órgão nacional responsável por esse processo.

Em 2002, o Quilombo do Areal recebeu a Certidão da Fundação Cultural Palmares. “O Quilombo do Areal é um dos poucos quilombos urbanos do país. A gente pressionou a prefeitura para ter uma garantia de ficar aqui, desde então estamos lutando para conseguir nossos direitos. Alguns moradores já conseguiram linha de crédito para fazer reformas”, conta Fabiane Xavier, coordenadora da associação de moradores e descendente do escravizados do Areal.

Em julho de 2013, o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), publicado no Diário Oficial da União, reconheceu a comunidade como área remanescente de escravizados. No dia 25 de maio de 2015, finalmente a conquista: o projeto de lei nº53/2015 foi aprovado na Câmara de Vereadores, concluindo todo o processo. Com a medida, a posse da área será coletiva, sob responsabilidade da associação. Não poderá ser vendida ou penhorada.

Essa é a história da Avenida Luiz Guaranha. Uma rua sem saída que já foi casa de verão de um barão e uma baronesa, castelo de um rei negro, e que lutou para oficializar o que nunca deixou de ser: um quilombo forte.

Mais fotos no link.

*Essa reportagem foi atualizada em 25/05, com a conclusão do processo de titulação do Quilombo.

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Editor, apaixonado por Carnaval e defensor do protagonismo negro. Gosta de escrever sobre representatividade, resistência e identidade cultural.
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