Em 2010, a jornalista Fabiana Moraes acompanhou a cabeleireira Joicy Melo da Silva, de 51 anos, moradora de Alagoinha/PE, em um momento definidor de sua vida: a cirurgia de redesignação sexual. O procedimento foi uma escolha da própria Joicy como forma de se reconhecer no mundo (nem todas as pessoas transexuais escolhem fazer a cirurgia), mas também a conquista de um direito de difícil acesso em regiões mais isoladas do país.
A convivência com a cabeleireira, desde as primeiras consultas até a fase de recuperação da cirurgia, foi intensa. “A quebra do meu distanciamento com Joicy se deu justamente ao acompanhar tão de perto sua extrema pobreza material e afetiva. Ela me tomou como uma espécie de âncora, e isso teve resultados tremendos em nossa relação”, relata Fabiana.
Âncora no redemoinho da vida de Joicy, que era incompreendida pela maior parte da família e dos conhecidos, Fabiana se viu envolvida na história, ao negar o distanciamento da relação jornalista-fonte, ensinado como um dogma nas faculdades de Jornalismo. O resultado desse encontro é “O Nascimento de Joicy”, uma série de reportagens com uma sensibilidade até então praticamente inédita na abordagem da transexualidade na imprensa tradicional brasileira. Publicado no Jornal do Commercio, de Pernambuco, o trabalho foi o grande vencedor do Prêmio Esso de Jornalismo e, agora, é lançado em livro homônimo pela editora Arquipélago.
Na publicação, Fabiana relembra os bastidores da reportagem e as bases de sua relação com Joicy, além de defender uma maior subjetividade no trabalho do jornalista. “No livro, conto como era impossível para mim não fazer compras ou dar algum dinheiro a Joicy quando ela estava em situação de penúria e eu, prestes a voltar para o conforto do meu lar. Penso que o jornalismo de subjetividade é aquele que traz para as matérias e reportagens os elementos que, na feitura do processo, escapam à ordem técnica da objetividade.”
O olhar de Fabiana é cheio de sensibilidade, na medida em que ela consegue retratar de forma delicada, com sentimento e empatia, as diferentes situações que Joicy vivenciou durante o processo, sem desrespeitar seu lugar de fala. Além disso, o texto não cai na armadilha da simplificação e dos estereótipos que, no geral, ainda marcam o tema da transexualidade na grande mídia. Ainda assim, hoje, a jornalista reconhece erros no tratamento que deu a alguns detalhes, como o uso da expressão “mudança de sexo”. “As mulheres e homens trans não mudam de sexo, mas, entre as e os que fazem a cirurgia, adequam seus corpos à identidade”, explica.
Em entrevista ao Nonada, ela falou sobre o posicionamento do jornalista diante de temas marcados por estereótipos, sobre a concepção da reportagem que deu origem ao livro e sobre a falta de sensibilidade no jornalismo.
Nonada – Como foi a concepção da reportagem? Já havia um interesse teu por identidade de gênero?
Fabiana – Queria passar mais tempo ao lado de um só personagem. Havia feito dois trabalhos em cima de perfis (Quase Brancos, Quase Negros e Os Sertões). Procurava um lugar de escrita diferente, fora do que eu sabia lidar, digamos assim. Por outro lado, sempre havia pensado sobre a sensação de estar no mundo “pertencendo” a um gênero sem se identificar com ele. Queria escrever sobre a desconstrução/reconstrução de um corpo, de um self. Joicy apareceu assim.
Nonada – Tu acompanhas o tratamento que o jornalismo dá para questões de gênero no Brasil? Qual é tua avaliação?
Fabiana – Olha, estamos melhorando a passos lentos, mas estamos. Hoje, as matérias que trazem absurdos como “nasceu ele, morreu ela” e coisas afins são questionadas em redes, são lançadas para a discussão. Acho que estamos amadurecendo e é preciso ter paciência. Mas os jornalistas precisam realmente ser mais cuidadosos com esses tais estereótipos que falei acima.
Nonada – Falta sensibilidade no jornalismo, no geral?
Fabiana – No geral, sim. A falta de sensibilidade consiste em trazer pessoas e questões de maneira superficial, folclórica ou vitimizada. Há também um movimento dos próprios jornalistas e maior ainda do público que pede uma aproximação de mais qualidade e menos preconceito com as questões do mundo. Não sou pessimista. Acho que as redes sociais podem fazer bem, nesse sentido. A capa do Extra sobre o adolescente acusado de matar o médico na Lagoa é interessante neste sentido – e o que a postagem provocou no Facebook do jornal é revelador.
Nonada – Assim como O Nascimento de Joicy fala sobre uma mulher e o especial Quase Brancos, Quase Negros fala sobre a questão racial, tu também és mulher e negra. Qual é a importância da identificação com o outro no jornalismo? E como se pode tratar de temas tão delicados e estereotipados como as pessoas trans, respeitando o lugar de fala?
Fabiana – O fato de ser mulher e negra ajuda sim a me colocar nos pés do outro. Mas, antes de tudo, o jornalista que escreve profundamente sobre a existência alheia ao seu cotidiano (será que somos realmente tão alheios assim?) precisa ultrapassar várias de suas próprias barreiras para alcançar um espaço de maior horizontalidade entre ele e seus personagens. Isso nao pode ser feito de maneira falseada. Aliás, quando o é, nota-se pela própria narrativa que os preconceitos estão lá. As pessoas trans, Joicy, servem como totem para pensarmos em vários outros grupos estereotipados fortemente através da própria mídia. Nosso papel, acredito, é desestabilizar esses lugares engessados e promovermos a ação, a agência, de quem fala, de nossos personagens.
Nonada – Por que perfis são raros no jornalismo? Falta empatia, interesse em ouvir o outro?
Fabiana – Não acho que os perfis sejam exatamente raros. Acho que as pessoas gostam de ler produções desse tipo. Mas, ao mesmo tempo, bons perfis rendem textos mais robustos. Quem tem tempo para ler robusto, atualmente? Qual nosso tempo médio de leitura? Eu ando cada vez mais preocupada com isso…