Uma moça levanta cedo, toma seu banho, seu café. Ouve um pouco de rádio ou vê as manchetes do jornal matinal na TV: A Prefeitura de Porto Alegre quer limitar as manifestações culturais de artistas de rua em espaços públicos abertos. Ela arruma sua mala, cheia de roupas e acessórios, as maquiagens estão na bolsa. Pega um ônibus lotado em direção ao centro. Encontra um espaço na rua e se arruma ali mesmo, no meio da Andradas. Troca a roupa e coloca maquiagem. Sua personagem está pronta.
Ela fica parada, estática, como uma estátua. As pessoas passam, olham a incrível habilidade que a moça tem em ficar naquela posição. Alguns colocam umas moedas na cestinha a sua frente. E, como agradecimento, ela reverencia. Para as crianças, faz uma graça. Mesmo parada, ela consegue ouvir, não muito longe dali, um grupo de teatro se apresentar e vários músicos que tocam ali por perto, na mesma rua. Pensa no colega que está na Redenção, bem longe dali, tocando violão para ganhar uns trocados.
Todos esses personagens estavam materializados nas dezenas de pessoas presentes no Cortejo dxs Artistas, que aconteceu na sexta-feira, 28 de agosto. A manifestação, organizada por vários coletivos artísticos, teve como objetivo se pronunciar contra a minuta de decreto de lei que regulamenta as manifestações artísticas de rua. Reunidos e reunidas em frente ao Mercado Público, artistas tocavam seus instrumentos de sopro e percussão, dançavam, faziam malabares.
Entoando o refrão: Minha Jangada vai sair pro mar/ Vou trabalhar, meu bem querer/ Se Deus quiser quando eu voltar do mar/ Um peixe bom, eu vou trazer/ Meu companheiros também vão voltar / E a Deus do céu vamos agradecer, o cortejo começou a subir a rua Borges de Medeiros. O refrão de Suíte do Pescador, de Dorival Caymmi, poderia ser facilmente um hino para representar a força daquele movimento.
Mas mais do que simplesmente uma forma de sustento, artistas de rua contribuem para levar alegria e cultura para a sociedade. Eles são responsáveis por apresentar uma nova forma de se apropriar da cidade, utilizando o espaço público como o palco. Além do mais, as apresentações artísticas ao ar livre possibilitam que pessoas não precisem pagar para consumir cultura e possam apreciar uma boa música, dança, peça teatral ou até mesmo recital de poesia. E mesmo com o desdém de muitos, dia após dia eles voltam para fazer aquilo que amam.
Historicamente, os centros urbanos são o local perfeito para que os artistas de rua possam se expressar livremente. Não apenas por ser um ambiente que exala cultura naturalmente, por seus prédios com arquitetura antiga ou as calçadas mais estreitas, o que impossibilita, por parte, o tráfego de carros. Mas também pela quantidade de pessoas que passam por ali, de diferentes classes sociais, consumindo o mesmo produto, gratuitamente. Não é por acaso que o Cortejo tenha se concentrado no Centro da Cidade, próximo à Prefeitura e em frente ao Mercado Público.
Subindo a Borges, logo as dezenas de artistas pararam o trânsito da Salgado Filho e foram em direção à João Pessoa. Mesmo sem saber direito o que acontecia, algumas pessoas, que se encontravam nos pontos de ônibus à espera do transporte, não se incomodaram por ter que ficar ali um pouco mais do que o habitual. Elas dançavam, timidamente, ao som de Eu Quero Botar Meu Bloco na Rua, do capixaba Sérgio Sampaio, enquanto algumas preferiram se juntar ao movimento. Um momento que, particularmente, me emocionou muito, por me lembrar do Bloco Regional da Nair – um grupo de música de Vitoria/ES.
Durante um período de duas horas, os manifestantes tocaram diversas músicas, dançaram com seus estandartes, pularam e cantaram bem alto. Dentro de um ônibus, um homem tocava violão para os passageiros que estavam presos no trânsito. De dentro de um dos prédios da João Pessoa, uma mulher tocava pandeiro, enquanto outra balançava uma bandeira. Outras se debruçavam pela janela do quarto ou na varanda para ver o cortejo passar. Todos ali, de uma maneira ou de outra, se animaram com o carnaval fora de época. Chegando na República, o público aumentou e caminhou junto até o Lago da Epatur.
Foi uma sexta-feira que se iniciou normal para muitos. Mas o cortejo trouxe alegria e diversão para muitas pessoas que pouco podem consumir uma forma diferente de cultura. Imaginem que chatice irá se tornar a cidade sem momentos como esse, diariamente? Imaginem que triste não poder ouvir uma música no centro, seja ela sertaneja, colombiana, funk ou blues? Espero que todos os dias, todos os artistas botem seus blocos na rua e que, com isso, nos alegrem das chatices da vida.
Mais: Ouça a entrevista Luiz Jakka, da Associação de Músicos da Cidade Baixa