Porque isso é o que permeia a sociedade brasileira, né? Racismo anti-negro existe e ele faz parte de muitos corpos maiores, ele é um arranjo sistêmico. Então, tem pessoas que são desprivilegiadas com o racismo, e tem pessoas que são privilegiadas com racismo. (Fernanda Oliveira)
No último sábado (19), a Galeria Ecarta abriu suas portas para discutir o racismo. Mas como fazer um espaço cultural – ocupado majoritariamente por brancos – ser palco para um debate que afeta outro público? Dando voz a quem sofre esse preconceito, a premissa da mostra X. A curadoria é assinada por Luísa Duarte, crítica de arte, e por Leo Felipe, diretor artístico da Galeria Ecarta. Os trabalhos expostos são de Carlos Vergara, Moisés Patrício e Rafael RG. Além disso, X conta com uma biblioteca coordenada por Fernanda Oliveira, doutoranda em História.
A Ecarta usou seu espaço (duas salas) com o próposito de inciar um diálogo com os visitantes. Ao entrar, à esquerda fica a biblioteca temática, que reúne diversas obras que falam sobre negros. Porém, o ponto de vista que os livros abordam é do negro como vítima da sociedade. Fernanda, a responsável pela opções literárias, acredita que é fundamental debater a posição em que o negro é colocado, pela sociedade. “Discutir racismo anti-negro exige que a gente discuta negritude e que a gente discuta branquitude. A gente precisa problematizar isso se a gente quiser, de fato, desconstruir racismo na sociedade, seja na arte, seja na sociedade de uma forma geral. Então, isso pautou a minha indicação dos livros. Já tinha uma lista de livros, mas a maior parte foi trocada, foi modificada, foram os livros que eu indiquei pra cá. Que é para justamente trazer essa perspectiva do negro não como problema da sociedade, mas a sociedade criando esse problema, esse não lugar pro negro”, argumenta.
Na lista de livros encontram-se nomes de escritores brancos que trouxeram o racismo às páginas, como Gilberto Freyre (1900-1987), Juremir Machado da Silva e Fernando Henrique Cardoso. Porém, os escritores negros são maioria como Chimamanda Ngozi Adichie, Kabengele Munanga, Oliveira Silveira (1941-2009), Carolina de Jesus (1914-1977) e Ana Maria Gonçalves. Todas as obras estão disponíveis para leitura e para aprofundar conhecimento sobre o tema.
Esse espaço da mostra X pode ser considerado uma sala de aula, no qual os professores tem apenas a negritude como requisito para lecionar. Além da biblioteca, ditos populares estão nas paredes, realização do artista Rafael RG. Todas as placas colocadas na sala refletem expressões conhecidas, tanto de negros quanto de brancos. A coisa ficou preta – A frase é utilizada para expressar o aumento das dificuldades de determinadas situações, trazendo forte conotação racista contra os negros. A diferença acontece apenas na recepção. Mesmo com uma conotação pequena, a leitura dessa simples frase tem uma vasta discrepância entre um negro e um branco. Apenas um negro poderá entender completamente o outro, mas os brancos podem ajudar. Como? Problematizando a sua posição privilegiada.
Problematizar a branquitude é o que a Ecarta está fazendo. Leo Felipe, o curador, iniciou seu projeto centrado na obra que Carlos Vergara desenvolveu nos anos 70, que propõe um alerta sobre a posição do negro na sociedade, mas ainda é um ponto de vista branco. “Eu vi que precisava de alguém me ajudasse a mudar isso, aqui mesmo na Ecarta, de trazer esse debate mais político, foi aí que encontrei a Fernanda”, relata. Ingrid Noal, artista visual, esteve presente nas atividades de inauguração na galeria, e ficou interessada e admirada pela proposta. “É comum ser abordado o belo e o exótico da cultura negra, dentro do campo institucionalizado das artes visuais. Frequentemente o racismo é ignorado, assim como os significados mais profundos das obras inspiradas na cultura de matriz africana. Obviamente, sempre existem exceções, instituições como a Ecarta que estão dispostas a fazer outro tipo de abordagem, e museus especializados no tema, como por exemplo o Museu Afro Brasil, que faz um trabalho importantíssimo de valorização das raízes e legados africanos”, conta.
Com a finalidade de enxergar o negro, a Ecarta realizou o passeio Territórios Negros, da Carris (Nonada apresentou essa atividade). Foi uma atividade restrita a convidados, que incluíam jornalistas, professores, e as pessoas envolvidas com a mostra X. Sob a tutela da historiadora Fátima Rosane, os convidados conheceram os pontos de história negra de Porto Alegre. Algumas histórias já eram sabidas, outras não. Das paradas que o ônibus fez, o Quilombo do Areal da Baronesa foi um dos que mais mexeu com os participantes. Alguns afirmaram que passariam reto pelo local, caso não fosse guiados.
As obras
Entre 1972 e 1976, o fotógrafo e artista Carlos Vergara – branco, se viu em uma situação diferente: ser a minoria. Durante esse período, Vergara registrou momentos de folia e de crítica social no Carnaval do Rio de Janeiro. O bloco Cacique de Ramos foi alvo de suas lentes, um dos mais simbólicos blocos da cidade. Eram aproximadamente 7 mil pessoas “caciqueando” no Centro carioca. Um dos cliques captou o que todo branco deveria ver:, o poder da negritude. São três rostos que definem a raça negra até hoje: curiosidade, atitude e desconfiança. O negro quer entender o que se passa à sua volta. O negro se impõe à posição que a sociedade branca lhe coloca. E o negro desconfia do que pode acontecer para com ele. Apesar de tudo isso, o negro quer poder. Poder entender. Poder se impor. Poder confiar.
O artista plástico paulista Moisés Patrício chega à mostra X com sua série Aceita? Nela, o artista embarcou num trabalho de dois anos:, postar uma foto diariamente em seu instagram. A proposta é responder ao racismo, à intolerância religiosa, à violência, à desigualdade sofrida pelos negros. Todas as fotos, iniciadas em 2013, são com sua mão direita e carregam um contexto ao fundo ou na própria mão de Moisés. A iniciativa é realizada da maneira mais contemporânea possível, por redes sociais.
Rafael RG apresenta a obra que mais evidencia o racismo na mostra. Monos (2014) relembra o episódio de 1920, quando a seleção brasileira foi à Argentina jogar um amistoso. O jornal Crítica trouxe em sua capa um desenho que “representaria” os atletas do Brasil, macacos. Como se não bastasse a imagem, o periódico publicou um texto altamente preconceituoso, sob o título Monos em Buenos Aires – Um Saludo a los “ilustres huespedes”. A ideia da obra de RG é a ambiguidade, se perguntando: “como um brasileiro responderia?”. Lima Barreto (1881-1922) sanou essa dúvida no mesmo ano. O jornalista escreveu um artigo enaltecendo as características do macaco e debochando dos demais animais que representam nações, como o galo francês e o urso russo.
A história do X
A letra X carrega história negra. O líder Malcolm X (1925-1965) é o principal responsável por isso. Nascido Malcolm Little (pequeno, na tradução), ele decidiu trocar de sobrenome quando estava na prisão. Destino comum aos negros, independentemente do local no mundo. Malcolm havia se convertido à religião muçulmana, e optou por mudar seu segundo nome, alegando que “Little” era uma alcunha branca/escravocrata dada à sua família. O X mudava essa referência, representava uma herança africana, um legado negro, embora desconhecido.
A xilogravura da exposição foi batizada de Xangô. Na Umbanda, Xangô é o Orixá da justiça, do equilíbrio e da sabedoria. Dono das leis e das escritas, ele é o padroeiro dos intelectuais. Simbolizado por Oxé, um machado de duas lâminas, e Xerém, espécie de chocalho que traz em suas mãos, sua lei é como a rocha: dura, justa, cega. É a divindade que rege o fogo, o trovão e os raios.
No dia 10 de outubro vai acontecer a primeira roda de conversa sobre racismo na galeria. A partir dessa atividade, surgirão outras que visam interação entre o público. A Galeria Ecarta fica na Avenida João Pessoa, 943, Porto Alegre. A visitação vai até 15 de novembro, de terça a sexta, das 10h às 19h; sábado, das 10h às 20h; e domingo, das 10h às 18h. Informações: (51) 4009-2971 e www.ecarta.org.br. A entrada é franca.