Foto: Fernando Halal/Nonada Jornalismo

Gal, a estratosférica

Texto Priscila Pasko

Fotos Fernando Halal

O palco certamente pesa mais quando Gal Costa está sobre ele. Pesa 36 álbuns, Tropicália, rupturas, parcerias. Ela entra de sorriso largo e vermelho no palco. Vestido floreado, babados que dançam nas mangas e que descem até os pés. Cachos nas alturas. Vejo em minha frente uma artista com 50 anos de carreira cantando nada do que fiz, por mais feliz, está à altura do que há por fazer. Nostalgia? Não, obrigada.

Foram os versos de “Sem medo nem esperança” uma parceria entre Arthur Nogueira e Antonio Cicero – que abriram o show Estratosférica, na última sexta-feira, no auditório do Araújo Vianna. A letra da música, uma pegada rock e feita especialmente para ela, traduz que tipo de artista é Gal: coerente. Não unge os pés do passado, mas reserva espaço para suas pegadas. E segue em frente.

No final da primeira música, Gal emenda “Mal secreto”, de Jards Macalé, presente no disco Gal Fatal (1971). Arrepios. A voz deixou-se abraçar pela guitarra de Guilherme Monteiro. Isso deixou claro o repertório que teríamos, uma mescla bem estudada.

Como não se bastasse Gal no palco, Milton Nascimento assistia ao show na plateia do Araújo Vianna. Não é sempre que dois artistas do gabarito deles estão sob o mesmo teto. Que momento. No domingo, Bituca fez um show na Redenção, na abertura da Segunda Edição do Porto Alegre Jazz Festival.

A atmosfera eletrônica tão presente no trabalho anterior, Recanto (2011), produzido por Caetano e Moreno Veloso, desta vez abre espaço para o rock, músicas gingadas e também “joãogilbertianas”. Em Estratosférica, Moreno Veloso assume a produção mais uma vez.

Logo depois da balada “Jabitacá” –  composta por Lirinha, e outros dois pernambucanos, Junio Barreto e Bacteria -, os focos de luzes dançaram freneticamente no palco, tentando criar um ar futurista a “Não identificado”, do álbum Gal Costa (1968). O clima psicodélico ficou por conta do teclado de Mauricio Fleury.
A afirmação de que Gal vem “modernizando” o seu repertório faz sentido se considerarmos as recentes parcerias com compositores mais jovens. Em Estratosférica, letras criadas por Céu, Criolo, Mallu Magalhães, Marcelo Camelo, Domenico Lancellotti, Jonas Sá e os já citados neste texto tomam forma na voz de Gal.

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A tour comemora os 50 anos de carreira da artista Foto: Fernando Halal/Nonada Jornalismo

Agora, dizer que Gal tem se renovado – ou “apelado”, como alguns diriam – ao incluir em sua discografia arranjos com pegada eletrônica ou rock, é ignorar a trajetória da cantora. Isso já havia sido feito lá atrás, no Tropicalismo, no final da década de 1960, com guitarras elétricas, enquanto, do outro lado, estava a turma da Bossa Nova.  A ousadia de Gal estava presente na maneira de se vestir, de cantar. Apenas para citar o seu segundo disco (Gal, 1969), foi considerado um dos registros mais radicais e experimentais de sua carreira.

“Tenho me jogado sem medo nem esperança. Tentando não sofrer demais com a saudade nem com expectativas. Este show é para celebrar isso. Bem-vindos a Estratosférica.” Foi assim, e só então, após a quarta música que Gal, conversou diretamente com o público, composto pelas mais diversas gerações.

No palco do Araújo Viana, Gal volta a 1969 e anima a plateia com “Namorinho de portão”, de Tom Zé, compositor de “Por baixo”, presente no show de Estratosférica: E por baixo do cheiro: a rede elétrica/Baixo da rede elétrica: os pelos/E por baixo dos pelos: as estradas/Que conduzem nos fios os teus arrepios/Manifestos em ois! E uis! E ais!/Lá onde a razão não chega mais, aqui o arranjo eletrônico voltou a dar os ares.

Gal aproveitou a balada “Espelho d’água”, letra de Marcelo e Thiago Camelo, para criar um clima mais intimista ao show. No palco, apenas Gal e Monteiro no violão, que tocam “Três da madrugada” para a alegria da plateia.
Guilherme Monteiro sai de cena e deixa Gal sozinha no palco em um banquinho e um violão, “algo que não fazia há muito tempo”, confessou ao público. E ela voltou ao passado para cantar “Sim, foi você”, música de seu primeiro compacto, quando ainda era conhecida como Maria da Graça, mesmo nome do compacto gravado em 1965. E aos 70 anos de idade, ela, a voz, continua límpida, potente e impecável.

Ao final do show, na vigésima canção, é que a música título é executada com um gingado contagiante. Estratosférica, composta por Céu, Pupillo e Junio Barreto: Das ladeiras dos sobrados/Das calçadas de pisar/Tu chegasse numa nave/Colorida de acender/Festejada festa/Pano florido/Abre, clareia/Flor amazônica/Vem das águas de banhar.

Foto: Fernando Halal/Nonada Jornalismo

Para encerrar, Gal leva ao repertório “Os alquimistas estão chegando”, de Jorge Ben Jor, momento em que a plateia levanta para se despedir e dançar. Na volta do bis, ao som de reggae, ela convida o público para cantar Vingança”, com o mesmo arranjo do show Gal costa canta Lupicínio Rodrigues, apresentado no mesmo local, em março deste ano.

Mas é antes de “Vingança” que a cantora se apresenta ao público resgatando “Meu nome é Gal” (Gal Tropical, 1979): Meu nome é Gal, tenho 24 anos/Nasci na Barra Avenida, Bahia/Todo dia eu sonho alguém pra mim/Acredito em Deus, gosto de baile, cinema/Admiro Caetano, Gil, Roberto, Erasmo/Macalé, Paulinho da Viola, Lanny/Rogério Sganzerla, Jorge Ben, Rogério Duprat/Waly, Dircinho, Nando/E o pessoal da pesada.”

Estratosférica é Gal, que não se resume em um show e se multiplica em si. Mas, é claro, na noite de sexta-feira, cada um viu a Gal que quis.

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Jornalista freelancer na área cultural e graduanda no Bacharelado em História da Arte (Ufrgs) e escritora. É autora do livro de contos “Como se mata uma ilha” (Zouk, 2019).
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