Em um primeiro momento, logo que o interlocutor menciona a Academia Literária Feminina do Rio Grande do Sul (ALFRS), uma expressão de dúvida nasce no rosto do ouvinte. Agora, se este mesmo informante descrever o sobrado localizado na rua Sarmento Leite, número 933, na Cidade Baixa, em Porto Alegre, imediatamente as rugas da dúvida se abrem como uma exclamação, para novamente se fecharem observando, “eu nunca ouvi falar”.
Verdade que aqueles que mantêm uma relação estreita com as Letras – e mesmo assim, alguns – já conheciam a instituição, fundada em 1943 por Lydia Moschetti (1896 (?) – 1982), e que segue suas atividades de forma ininterrupta. Ao lado de Lydia, participaram da inauguração Stella Brum, Alzira Freitas Tacques, Aurora Nunes Wagner, Áurea Pereira Lemos, Aracy Fróes e Beatriz Regina. Juridicamente falando, seria a primeira academia do tipo registrada no Brasil. Foi reconhecida como “utilidade pública” pela Lei Municipal 4040/53 e também foi declarada, em 2007, como Patrimônio Histórico e Cultural do Rio Grande do Sul.
Camila Petró, que iniciou seu trabalho de conclusão (TCC) em História, na Ufrgs, sobre a ALF nos idos de 2010, conta que ficou sabendo da existência da instituição quase por acaso. Ela fazia estágio no Museu Joaquim José Felizardo, na Cidade Baixa, quando chegaram em suas mãos postais para serem catalogados. Pertenciam a uma mulher chamada Noemy Valle Rocha (1889 – 1978). Camila pesquisou o nome e encontrou uma biografia sua no site do Museu da Medicina, descobrindo que Noemy havia sido uma das primeiras mulheres a se formar na área no Estado, e que ela pertencia a uma tal Academia Literária Feminina.
A partir dali, começa a investigação de Camila sobre a instituição: como ela se estruturou e quais foram as características iniciais. Esse foi o primeiro trabalho acadêmico de fôlego sobre a ALFRS. Agora a historiadora está na fase final do mestrado, no qual também estuda a instituição. A intenção, desta vez, é pesquisar os 30 anos iniciais da entidade.
A Academia Literária Feminina define-se hoje como uma associação de caráter cultural sem fins lucrativos e congregada de mulheres. Entre os objetivos estão o de “contribuir para a valorização cultural e intelectual da mulher; incentivar a pesquisa científica e estimular a criação de obras de caráter literário e artístico; promover atividades culturais para o reconhecimento da plena cidadania da mulher”. Ela é composta por 40 integrantes titulares e vitalícias, sendo que cada uma deles ocupa uma cadeira, que tem a sua devida patrona em um esquema semelhante à Academia Brasileira de Letras. Aqui, a patrona é uma escritora da literatura sul-rio-grandense ou nacional. A Academia abre ao público em dias de posse, saraus entre outras atividades.
Figuram entre as patronas nomes como Nísia Floresta Brasileira Augusta (1810-1885), Luciana de Abreu (1847-1880), Júlia Lopes de Almeida (1862-1934), Francisca Julia da Silva (1874-1920), Cecília Meireles (1901-1964) e Lilla Ripoll (1905-1967).
Conforme é exposto no TCC de Camila (A criação da academia literária feminina do Rio Grande do Sul – projeto e campo de possibilidades na Porto Alegre da década de 1940), a ata de fundação se mostra atual, mesmo após 72 anos. Lydia Moschetti escreveu que o objetivo era o de criar uma “instituição literária genuinamente feminina”, e de dar também à mulher intelectual o valor que ela merece e o lugar de destaque ao qual tem direito entre os homens das Letras das gerações presentes e futuras”.
Os estudos têm proporcionado muitas descobertas à historiadora, porém o que mais a surpreendeu foi pensar nas tantas mulheres que escrevem e são desconhecidas. “Se a gente quiser pensar em valor estético da literatura, ainda assim, a gente não tem como dizer se eles são maiores ou menores, porque essas escritoras não são analisadas pela crítica”, destaca Camila.
Não se pode ignorar que as intelectuais integrantes da academia não representavam todas as mulheres da sociedade, já que faziam parte de uma elite. A historiadora pensa que, mesmo assim, as escritoras na literatura ainda são excluídas independentemente da classe. “Claro, se a gente pensar numa Maria Carolina de Jesus (1914 – 1977) a gente vai ver que sim, existem mulheres muito mais excluídas. Mas percebemos que só a questão econômica não tira a exclusão de gênero”, conclui.
A conquista da visibilidade
É claro que na época em que a Academia Literária Feminina foi criada no Rio Grande do Sul, outras iniciativas nasciam, como é apontado no trabalho de Camila Petró: a Liga Feminina Cearense (1904) ou ainda a Ala Feminina (1942) da Casa Juvenal Galeno, também no Ceará. Há o registro da Academia de Letras Feminina, no Rio de Janeiro, porém como a pesquisadora informa, não foi encontrada a data de criação.
As mulheres estavam inseridas num contexto em que buscavam reconhecimento e espaço nas escolas, e não apenas em casa, como acontecia. Os termos “feminismo” ou “feminista” aparecem uma ou duas vezes nas atas, informa Camila, dizendo perceber nitidamente o sentido feminino, não o político. “Ao mesmo tempo, elas estão reivindicando um espaço de visibilidade. Tentam se fechar e criar um grupo, porque, talvez, tivesse sido a maneira encontrada na época”.
A maioria das escritoras publicava por conta própria ou em pequenas editoras. “Até hoje é assim”, destaca a historiadora que cita em sua dissertação de mestrado a pesquisa coordenada por Regina Dalcastagnè, que analisa os personagens da literatura contemporânea brasileira, e aponta que 72,7% dos autores são homens. Camila indaga o motivo do Partenon Literário (associação literária criada em Porto Alegre, em 1868) ser tão conhecido, e o fato de a única mulher lembrada ser Luciana de Abreu. Ela seria, para a historiadora, a exceção que confirma a regra.
Apesar de se deparar com informações e dados como esses, Camila espera que um dia não seja mais necessário fazer este tipo de pesquisa, que acaba sendo marcada pelo resgate da trajetória de mulheres. “Mas enquanto a história da humanidade continuar sendo como a dos homens, a gente vai ter que continuar com a história das mulheres”, pontua, lembrando que a “história das mulheres” não é delas, mas de uma parte que engloba 50% da população e que é excluída. “A história das mulheres é da humanidade.”
As acadêmicas do século passado não conseguiram concretizar tudo o que haviam almejado, mas garantiram a visibilidade. Por exemplo, a partir de 1949 (circula até 1972) elas criam a Revista Ateneia, órgão de divulgação da ALFRS. A partir de então a publicação é vendida ao público externo, chegando a ter 500 assinaturas. No conteúdo, havia poesia, prosa, pesquisa sobre folclore e textos com viés mais acadêmico.
O desafio de manter-se em pé
As dificuldades econômicas precisaram ser vencidas no decorrer da história. Os primeiros encontros das acadêmicas aconteceram em espaços como o salão de festas da Associação Riograndense de Imprensa (ARI), o salão de conferências do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul ou ainda na casa da poetisa Aura Pereira Lemos, na rua dos Andradas, nos altos da casa de penhores Ao Belchior. A sede atual, localizada na rua Sarmento Leite foi doada pela acadêmica Noemy Valle Rocha, após o seu falecimento, na década de 1970.
Ainda que a entidade tenha como garantia um espaço próprio, a falta de funcionários inibe atividades abertas ao público. O arquivo, por enquanto, está nas mãos de Camila, que, ao mesmo tempo em que pesquisa, também organiza os documentos.
Santa Inèze da Rocha, caneta em mãos, organiza papéis sobre a mesa da recepção da entidade. A presidente da Academia Literária Feminina conta que, por meio de uma emenda parlamentar, o projeto de organização do Memorial Feminino foi contemplado em 2008 pelo PRONAC, através do Fundo Nacional de Cultura do Ministério da Cultura. A primeira etapa, já concluída, diz respeito à reforma do sobrado e à aquisição do arquivo deslizante.
Falta a segunda fase, relacionada ao patrimônio imaterial com a recuperação e preservação da documentação da Academia, acumulada nos mais de 70 anos de história. Além da documentação, há livros raros que estão sendo recuperados, revistas publicadas pela Academia e o legado de cada acadêmica.
O trabalho de pesquisa já resultou em duas publicações, as reedições de dois livros: Divórcio?, de Andradina América de Andrade e Oliveira, e Autobiografia, de Lydia Moschetti – os dois organizados por Hilda Flores. “Ter uma sede como essa é maravilhoso, mas é também algo pesado para direção da Academia. Fazer a manutenção e o uso da casa de acordo com as finalidades da instituição”, lamenta Santa Inèze.
A academia se mantém exclusivamente com o pagamento da anuidade das acadêmicas (R$ 170,00). A presidente diz que, considerando aquelas que faleceram, o valor total deste ano deve fechar em R$ 4 mil. “Estamos todas com idade bastante avançada, eu tenho 75 anos. Precisaríamos ter gente mais jovem. Há algumas mais novas, que entraram nos últimos anos.”
A presidente da ALFRS considera a conclusão do projeto do Memorial Feminino como um de seus principais objetivos. “Tínhamos que ter uma biblioteca aberta para que as mulheres pudessem trazer seu livro. Precisamos lutar neste sentido”.
Boa tarde. Gostaria de saber se a Academia guarda as obras ou publicações da excelente acadêmica Anna Luiza Teixeira. Senão, onde posso encontrá-las?