Andradina de Oliveira, a escritora que retratou a Belle Époque de Poa

veredas-banner-300x300px (1)Bondes, iluminação nas ruas, confeitarias, novos bairros, belas mansões e a forte presença da cultura e de expressões francesas em rodas de conversas e nas residências. Eis os elementos que evidenciam uma Belle Époque na então promissora Porto Alegre, que, a caminho da modernidade, alternava valores regionais e universais. Tal cenário está exposto no livro O Perdão (1910), escrito por Andradina América de Andrade e Oliveira (1864-1935/Porto Alegre). Mas a obra, publicada um ano antes em forma de folhetim no jornal Escrínio – criado por Andradina -, vai além ao mostrar a postura e as agruras das mulheres que viveram no início do século XX.

A análise desta época e do olhar etnográfico da escritora de O Perdão é feita por Lúcia Henriques Maia, no livro Porto Alegre, Belle Époque: a paixão segundo Andradina (Corag, 117 págs., 2015). A publicação é resultado da tese de mestrado de Letras da revisora, tradutora e pesquisadora, concluído em 2010. Lúcia foi praticamente resgatada pela história de Andradina na disciplina de Tópicos de Teoria da Literatura, do Programa de Pós Graduação em Letras.

“Na praça da Alfândega, onde uma banda militar exgotava um repertório vasto de valsas e polkas entremeiadas a trechos de óperas e dobrados, os grupos demoravam os passos, mais lentos, e depois voltavam, uma e outra vez, até à rua Marechal Floriano, sempre na permuta dos mesmos sorrisos, sempre em meio do mesmo borborinho discreto sobre o qual pairava um mixto de perfumes em moda com o aroma acre da poeira.” Trecho de “O Perdão”

A escritora Lúcia Henriques Maia estuda a obra de Andradina (Foto: Louise Soares/Nonada)
A escritora Lúcia Henriques Maia estuda a obra de Andradina (Foto: Louise Soares/Nonada)

Lúcia conta que o interesse pela obra foi despertado por sua curiosidade sobre a realidade das mulheres retratadas no romance. “Minhas avós viveram nesta época. Foram mulheres que sentiram um impacto sociológico muito grande. E raras tiveram coragem para quebrar tabus. Era preciso uma força hercúlea ou então uma necessidade muito premente”, enfatiza a pesquisadora, que, mais adiante, teve em mãos a cópia xerográfica da microfilmagem feita a partir de um raro original de O Perdão. Desta forma, além do valor documental, Lúcia também pôde sentir a mesma experiência dos leitores do início do século XX, ao ter contato com a grafia adotada na época e sem as adequações ortográficas comumente aplicadas em reedições. Tinha um pedaço do passado, vestido a caráter, em suas mãos.

O romance apresenta como tema central o adultério cometido por Stella. Pertencente a uma família burguesa, ela trai o marido Jorge com o sobrinho recém chegado do Rio de Janeiro, Armando. A partir de então a protagonista que vive a culpa e o medo de ser descoberta pelo marido – e pela sociedade – foge com o amante.

No entorno da trama principal, no entanto, Andradina também fala das relações de poder de classe e gênero, do espaço público e privado e registra o linguajar próprio de imigrantes, escravos libertos e elite rural. “Ela [Andradina] se preocupou em registrar tudo. Fala sobre a fundação da praça Júlio de Castilhos, do bairro novo do Moinhos de Vento e suas mansões”, conta Lúcia. “Tu não tens o registro etnográfico da cidade desta forma [em outras obras]. O Estrychnina (1897) do Mario Totta, que, teoricamente, seria etnográfico, eu não encontrei elementos. É uma lástima que Andradina tenha sido apagada”.

“(…) O que as Zina gasta com a cambuiada dos vadio dava pra as Barutinha vive sossegada num cantinho; mais é tudo prá os mau agardecido! Insmola escondida não é bonito. É mió entrá a cambuiada: assim o povo pensa que tudo aqui tem bão coração! Depois os nome vae prá o jorná. A Eva é burra mais entende as coisa (…).”  Trecho da fala da cozinheira, em “O Perdão”

Como parte da investigação, Lúcia e sua orientadora Rita Schmidt (leia a entrevista feita pelo Veredas com a pesquisadora) buscaram informações sobre a recepção da obra quando lançada, mas não tiveram êxito. “Não encontramos nada, é como se a Andradina não tivesse existido”, lamenta Lúcia, que procurou notícias sobre a obra em jornais como Correio do Povo e A Federação.

Por volta de 2012, contudo, o presidente do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, Miguel Espírito Santo, encontrou no jornal O Globo, de 1912, uma resenha breve sobre O Perdão. Dizia a nota que este era “um romance forte, com laivos românticos”. O que realmente era, concorda Lúcia, já que Andradina mescla dois estilos em seu romance por viver em uma fase de transição. Em certos momentos, a escritora descreve uma cena com cores românticas, para, em seguida, expor ares bem naturalistas.

 Avenida e Praça Otávio Rocha, na década de 1940 (Fonte desconhecida)
Avenida e Praça Otávio Rocha, na década de 1940 (Fonte desconhecida)

O pensamento como capital  

Viúva desde muito jovem e com dois filhos, Andradina de Oliveira desviou do caminho imposto pela sociedade. Ao invés de se dedicar ao lar, cozinhando ou costurando, a professora diplomada pela Escola Normal de Porto Alegre (hoje Instituto de Educação General Flores da Cunha) dedicou-se ao ensino em escolas públicas de várias cidades do Interior do Estado, além de ministrar conferências. Afinal, ela precisava sobreviver e sustentar os dois filhos. Como aponta Lúcia Maia, este era o “o ganha-pão” da escritora, que não fazia diletantismo: “o capital dela era a cabeça”.

Andradina escreveu sua primeira peça de teatro aos 14 anos de idade. Em 1898, fundou em Bagé o semanário Escrínio – jornal literário, artístico e noticioso, em que divulgava o ideário feminista. Suspendeu a publicação apenas para cuidar do filho Aldaberon, que faleceu de tuberculose, em 1906, com 20 anos de idade, em Rio Pardo. Em 1907, publicou A mulher rio-grandense: escritoras mortas, resultado de anos de pesquisa pelo Interior do RS. No ano seguinte, lança Cruz de pérolas.

Em 1909, a escritora mudou-se para Porto Alegre com sua filha Lola e retoma as publicações do Escrínio, que passou a contar com repercussão nacional em razão dos vínculos com outros jornais do Brasil. Foi neste ano que começou a publicar, no jornal, O Perdão. Andradina dava aulas e circulava pela cidade, exceto os lugares defesos a ela.

Na Porto Alegre retratada pela autora, a mulher não pode entrar em um café ou tomar o bonde desacompanhada, por exemplo. O espaço público, de fato, pertencia aos homens. Moças e senhoras não podiam sair sozinhas, jamais, ressalta Lúcia. “Mas a mulher trabalhadora podia. E Andradina era trabalhadora por escolha”.

Lúcia, em um exercício de imaginação, enxerga Andradina na janela tentando escutar os homens falarem nos cafés e bondes, já que ela descreve com riqueza de detalhes as conversas. “Ela fez uma pesquisa incrível, abrangente. Captou os segmentos sociais e culturais que estavam ali naquele momento”. Lembra que, assim como Simões Lopes Neto (1865-1916) sentia a melancolia pelo campo e pelos valores que pensava que não seriam resgatados nunca, Andradina também parece pressentir que a efervescência pela qual Porto Alegre passava iria desaparecer. Uma espécie de nostalgia antecipada.

Uma confraria de mulheres  

Além da obra de Andradina, Lúcia descreve a relação entre as escritoras da época (Foto: divulgação)
Além da obra de Andradina, Lúcia descreve a relação entre as escritoras da época (Foto: divulgação)

“Nós, que estamos em outra situação hoje, parece que estão inventando uma história quando imaginamos as condições de vida de uma mulher naquela época [século XIX e início do XX]”, reflete Lúcia, lamentando que ainda é possível sentir tais reflexos.

A pesquisadora conta que a historiadora Hilda Flores constata que, em resposta ao ambiente tão repressor à mulher intelectual, elas passaram a fazer parte de uma espécie de confraria. Moças e senhoras se protegiam, se convidavam para falar em conferências, publicavam nas revistas umas das outras. Um pacto implícito. Algo como “já que eles não querem nos ouvir nesta sociedade estratificada, então vamos nós criar nossos grupos”.

Lúcia conta que, mais do que legitimar em termos de conhecimento, elas se ajudavam a sobreviver. “Elas precisavam daquelas palestras pagas, daqueles artigos. Viviam do conhecimento. Era algo muito maior do que uma mera legitimação, de vaidade“, explica, e ainda cita o exemplo de outra escritora que fez história, Júlia Lopes de Almeida (1862-1934).

A carioca também vivia da literatura produzida por ela. “Vendia tanto que levou o marido, as filhas, genros e netos para uma turnê pelo Brasil com o dinheiro que ganhava como escritora. Agora pensa se ela foi parar na ABL?”, indaga Lúcia. Ela explica que, mesmo Júlia tendo participado das reuniões – que eram em sua casa – de criação da ABL, seu nome foi excluído da primeira lista dos imortais. O grupo preferiu manter a norma da Academia Francesa. Em seu lugar, entrou o marido, o poeta Filinto de Almeida (1857-1945). (a ABL passou a aceitar mulheres apenas em 1977, com Raquel de Queiroz, na cadeira n°5)

Em 1912, Andradina lança Divórcio?, considerado por Hilda Flores como um dos clássicos da literatura de gênero. O livro é publicado quando a campanha tramitava no Congresso Nacional. A obra apresenta contos em forma de cartas, em que são analisados os reflexos de uma união forçada. Levando em conta que o divórcio passou a valer somente em 1977, percebe-se o protagonismo de mulheres como Andradina. Além dela, trataram sobre o tema Inês Sabino, em Lutas do coração (1898), Francisca Clotilde, em A Divorciada (1902), e Carmen Dolores, em A Luta (1911), apenas para citar alguns exemplos.

Entre 1915 e 1920, Andradina faz uma turnê cultural com a filha Lola pelo Uruguai, Argentina, Paraguai e pelo Mato Grosso. A escritora realizava conferências, enquanto a filha ensinava desenho e pintura. Sua partida de Porto Alegre provavelmente esteja relacionada ao livro Divórcio? e à forte campanha travada por Andradina, o que era mal visto na época.

Andradina foi presa durante a Revolução de 1932, desencadeando insanidade mental, que a levou à morte em 1935, aos 71 anos de idade, na cidade de São Paulo. Ela é patrona da cadeira n° 11 da Academia Literária Feminina do RS.

“(…) Mas, por amor da Santa Coerência! Se os senhores romanistas julgam o matrimônio indissolúvel, eles que se submetam cristãmente aos infernos dos casamentos mal assortis; querer, porém, obrigar os que não pensam do mesmo modo a agir como se fossem essas as suas ideias, é uma intolerância própria dos tempos inquisitoriais! (…)”  Trecho da introdução Às mulheres e aos homens do meu país, de “Divórcio?”

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Jornalista freelancer na área cultural e graduanda no Bacharelado em História da Arte (Ufrgs) e escritora. É autora do livro de contos “Como se mata uma ilha” (Zouk, 2019).
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