O Planet Hemp voltou e a caravana não pode parar

Divulgação
O show na Capital é exemplo da relevância que o Planet Hemp, mesmo em 2015 (Crédito: Divulgação)

Texto: Bruno Teixeira
Fotos: Luiz Silveira

Engana-se quem pensa que o Ritmo e a Raiva é apenas o título do DVD gravado em 2013 que a banda Planet Hemp veio lançar no Pepsi On Stage, na última sexta-feira, 4. Afinal, pelo que foi visto no palco, ritmo e raiva foram elementos intrínsecos na apresentação do grupo. O ritmo, na sonoridade contagiante da mistura entre rap, rock, psicodelia e o hardcore pesado, entre outros estilos. Já a raiva se manifestou nos versos agressivos e nos discursos que Marcelo D2 e BNegão proferiam ao público: “Foram cinco crianças que eles mataram, cinco crianças”, desabafou D2. “Tudo isso para acabar com as drogas”, ironizou.

O ano é 2015, mas a noite de sexta-feira foi um retorno aos anos 1990. Não só pelo fato do Planet Hemp ser um dos grupos mais relevantes da cena musical brasileira daquela época, mas por sua obra ainda ocupar um importante espaço de representatividade no debate sobre a descriminalização das drogas. A frase de Marcelo D2, reproduzida anteriormente, lembrou o assassinato de cinco jovens fuzilados com mais de 100 tiros disparados por policiais militares , no subúrbio de Costa Barros, Rio de Janeiro, no sábado 28 de novembro, e foi dita logo após a execução da música “Zerovinteum” (1997), que lembra a chacina de Vigário Geral, ocorrida em 1993, e fala sobre a repressão policial em versos como: Aqui fazem sua segurança assassinando menor/ Te calam por bem ou vai pro mato/ Mas de repente invadem a minha área, todos fardados/ Pow pow pow e nego não vai pro céu/. Infelizmente, passados 18 anos, pouca coisa mudou.

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BNegão não deixou de destacar a chacina que aconteceu dia 28/11, no Rio

É inegável que, além dos elementos já citados, o fato do Planet Hemp falar diretamente sobre o consumo da cannabis é um de seus atrativos. No entanto, reduzir a banda e seu público a este esteriótipo é nadar pelas águas do senso comum no qual o debate sobre a legalização da maconha navega por muitas vezes. Hoje, há outras bandas que também abordam abertamente suas relações com a maconha. Porém, dificilmente, alguma delas consegue mobilizar um contingente tão diversificado e numeroso quanto o reunido pelo Planet Hemp no show do Pepsi On Stage. Às 22h40min, 20 minutos antes do horário marcado para o início da apresentação, o clima do lado de fora lembrava o ambiente de um festival. Ao longo da calçada, uma fila enorme levava até a porta da casa de shows. Do outro lado da rua, sentadas no gramado do canteiro central, em meio às banquinhas de cachorro quente e churrasquinho, bebendo cervejas e fumando seus baseados, várias pessoas aproveitaram o calor da noite.  

Do lado de dentro, a casa ainda não estava lotada e o show teve de ser atrasado, possivelmente para dar mais tempo para a entrada do público. Coube ao Dj  segurar os ânimos de quem estava no local e aquecer o público até a entrada da banda. Tocando clássicos do hip-hop e do rock como Public Enemy (“Figth the Power”), Cypress Hill (“Insane In The Brain”), Beastie Boys (“Sabotage”), Chico Science e Nação Zumbi (“Da Lama Ao Caos”), ACDC (“Highway to Hell”) e Raimundos (“Eu Quero Ver o Oco”), grupos que também são referências da banda carioca, o Dj conseguiu criar uma boa atmosfera no local, realizando ali não apenas um aquecimento mais um verdadeiro show de abertura. O público respondia cantando ou ensaiando algumas rodas punks que lhe fizeram vibrar e erguer os braços como um jogador de futebol que pede que a torcida cante mais.

Uma hora se passou, à meia-noite o Dj tocou “Erva Proibida”, samba gravado por Marcelo D2 com participação de Bezerra da Silva, anunciando que a banda entraria em poucos instantes. Logo depois, com Formigão (baixo), Pedro Garcia (bateria) e Nobru (guitarra) já posicionados no palco, ouvindo o nome do grupo sendo gritado em coro pela massa, Marcelo D2 e BNegão invadiram o palco. Para a surpresa de muitos, não houve uma faixa introdutória, como ocorrido em 2012, no mesmo Pepsi On Stage, ou no clássico MTV ao vivo. A dupla de vocalistas mandou “Procedência CD” e “Ex-quadrilha da fumaça”, em um hardcore que deixou o público maluco. A roda punk tomou a pista como um furacão, copos sobrevoaram cabeças provocando uma chuva de cerveja. A insanidade havia tomado conta do local e estávamos apenas na segunda música.

O primeiro disco do grupo, Usuário (1993), foi executado praticamente na íntegra. Marcas desse álbum, “Legalize Já”, “Dig Dig Dig (hempa)”, “Fazendo Sua Cabeça”, “Deisdazseis” e “Phunky Buddha” deram sequência ao rito. Quando a banda parou para dar boa noite ao público, e as coisas pareciam que ficariam um pouco mais calmas, Marcelo D2 anunciou: “Tirem as crianças da sala”, e contou rapidamente até quatro. E com “Mary Jane”, ele fez o clima do show ir às alturas novamente.

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As críticas da banda ao comportamento da polícia foram além das letras

Então, BNegão anunciou: “Ontem, em São Paulo (no Espaço das Américas) tocamos uma música que não ensaiamos e depois de décadas vamos tocá-la em Porto Alegre. Uma música bem singela chamada ‘Porcos fardados’”. A partir desse ponto, a mensagem sobre a criminalização do usuário, a repressão da polícia e sua relação com o sistema, conteúdos presentes em outras músicas já executadas, passaram a ser abordadas diretamente. Relações essas que estão em evidência no RJ e que estão presentes como feridas expostas por todo o país , como chacinas e prisões arbitrárias de jovens, geralmente negros, da periferia. Afinal, Porto Alegre e outras cidades também compartilham das mesmas ações controversas por parte do poder público. Se esse cenário não causa comoção em algumas pessoas, ele parece ter influenciado o Planet Hemp neste novo retorno. Após “Zerovinteum”, que lembrou a chacina de Costa Barros, a banda tocou “A Crise é Geral”, da banda Ratos de Porão. “Futuro do País”, música por vezes preterida nas apresentações, seguiu a linha de protesto.

Neste ponto, as diversas rodas punks formadas, e muitas vezes elogiadas pelos vocalistas, pareciam enormes redemoinhos em meio ao mar de gente, pois conforme o clima, eles aumentavam e sugavam quem estivesse pela frente, ou simplesmente diminuíam. No entanto, a grande possibilidade de ser atingido pelos corpos que recocheteavam como bolas de pinball parecia não preocupar algumas pessoas e, após a sequência de músicas contra o sistema, “Stab” teve o seu refrão entoado como um hino de resistência. Vários irmãos se recolhem e vão em frente/ vários também escravizam sua mente/ Eu sei bem, quebro a corrente onde passo e planto a minha semente/ Gafanhotos nunca tomam de quem tem/ Predadores, senhores que mentem/ esperem sentados a rendição/ Nossa vitória não será por acidente/.

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Todos no Pepsi estavam esperando a pergunta D2

Talvez a execução de “Stabtenha sido o grande momento de celebração do show, mas não foi o único. Quando Marcelo D2 começou a cantar “Quem tem Seda?”, o palco foi totalmente iluminado com luzes verdes. Já as luzes que estavam sobre o público foram diminuídas, permitindo a este que cumprisse o tradicional rito de levantar o isqueiro aceso enquanto D2 pergunta: “Quem tem seda, quem tem seda”? “Contexto”, outro sucesso do grupo, também deu um clima de festa ao show e proporcionou cenas patéticas dignas dos clássicos vilões de desenho animado. Cumprindo as ordens da casa, vários seguranças se espalharam em meio ao público e passaram a confiscar os baseados das mãos de seus portadores. Enquanto um cigarro era recolhido, outros dois surgiam logo ao lado. No palco, D2 cantava, “querem controlar, mas são todos descontrolados”, e o segurança seguia em sua constrangedora missão. Enquanto esses outros dois cigarros eram confiscados, mais três, quatro, cinco surgiam e daí por diante. Foi como  assistir ao Coiote tentar capturar o Papa-Léguas ou ao Leôncio perseguir o Pica-Pau.

O grupo prestou sua tradicional homenagem a Chico Science e outros músicos como Chorão e Speed Freaks cantando “Samba Makoss” e encerrou o show em alta voltagem tocando “Mantenha o Respeito”. No saldo, surpreende a capacidade da banda, mesmo após um hiato de dez anos e uma turnê de reunião, conseguir manter durante todo o show o nível semelhante ao de vinte anos atrás. Além de Marcelo D2 e BNegão, cada integrante consegue evidenciar seu talento nas músicas, como acontece com Formigão, Pedro Garcia e Nobru, que executou com maestria os solos do guitarrista Rafael Crespo.

Deste modo,  só resta recorrer às metáforas do futebol para explicar o que é ver o Planet Hemp de volta aos palcos: um time de jogadores veteranos que, por mais que tenha ficado parado, nunca perde a categoria. Portanto, a caravana está de volta, e por mais que os cães ladrem, ela não pode parar.

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