Essa frase dita pela sufragista Emmeline Parnkhurst, um dos ícones do novo longa de Sarah Gravon, As Sufragistas, é um grito por representatividade. É complicado falar de um filme como esse sem lembrar de tantos movimentos sociais de mulheres que lutam por espaços que tornem seus anseios e reivindicações legais. Sendo assim, As Sufragistas emociona por trazer à tona um sentimento que permeia tantos grupos desprivilegiados em uma sociedade patriarcal, racista e excludente como a nossa.
No longa, Maud Watts (Carey Mulligan) é uma jovem trabalhadora, mãe e esposa, que divide sua pesada rotina em ser supervisora de uma lavanderia industrial e os trabalhos da casa. Lentamente e sem intenção, ela começa a se envolver com o movimento sufragista em Londres, no início do século XX, a partir da influência de sua amiga Violet Miller (Anne Marie Duff), uma das seguidoras de Parnkhurst (Meryl Streep).
A jovem Maud é presa e expulsa de casa pelo marido. Além disso, este alega que não conseguiria criar o filho dos dois sozinho e o entrega para a adoção. A legislação toda protege os atos de Sonny Watts (seu marido, intepretado por Ben Whishaw), pois apenas em 1925 a lei teria reconhecido o direito da mãe sobre o filho na Inglaterra. Sendo assim, é triste perceber como a vida de Maud despedaça-se devido à falta de autonomia oferecida pela legislação da época. Pouco a pouco, ela começa a apaixonar-se pela causa e a participar de ações junto com a química Edith Ellyn (Helena Bonham Carter) e Emily Davison (Natalie Press), em busca de visibilidade para que as questões relativas ao voto feminino fossem discutidas no Parlamento.
O movimento sufragista na Inglaterra foi, segundo os estudos de Maria Zina Abreu, inicialmente pacífico. As sufragistas inglesas construíram seus preceitos de igualdade a partir de conceitos vindos do liberalismo. Desde 1830, as mulheres militavam pela abolição da escravidão e pela extensão dos direitos políticos aos trabalhadores. Em 1847, em Londres, surge a primeira Associação Política Feminina com a intenção de lutar pelo sufrágio. Ao longo da segunda metade do século XIX, petições e ações pacíficas foram realizadas pelo voto feminino buscando atrair atenção para a causa, porém, sem sucesso. Sendo assim, a inexistência de resultados fez com que a campanha pelo sufrágio tomasse tons mais agressivos na virada do século.
O longa toma espaço nesse momento de maior agressividade, quando Parnkhurst propôs às mulheres inglesas pequenos atos de desobediência civil em nome de atrair atenção da sociedade e da mídia para a campanha sufragista. As mulheres que seguiam Parnkhurst o faziam com uma fé fervorosa em sua líder, sendo, inclusive, presas para protegê-la. Porém, a sua fé não era em uma religião, mas no desejo e na esperança absoluta que o sufrágio de fato fizesse alguma diferença. Pode-se perceber a real expectativa daquelas mulheres em mudar a sua realidade a partir do voto. E nós, atualmente, sabemos todo o longo e sofrido caminho enfrentado pelas mulheres durante todo o resto do século, mas que teve como o direito ao voto, em alguns casos, seu catalisador de mudanças.
E Parnkhurst não é uma líder fria e que deixa suas “soldadas” (como as mesmas se definem) sozinhas. Ela é estratégica e interpretada com maestria pela experiente Streep, que confere a ela um tom agregador, porém jamais submisso. Seu discurso possui momentos empolgantes e, naquela situação, é referente ao direito de voto, mas podendo ser aplicado, por exemplo, para o direito renegado das mulheres ao aborto. As mulheres querem ter suas demandas atendidas – até hoje! – e para isso, em muitas situações, é necessário que elas chamem a atenção de um modo não aprovado pelo patriarcado (a “desobediência civil”), sendo vista como loucas, desrespeitosas ou, em muitos casos, transgressoras de leis.
E o filme é bem sucedido ao mostrar a perseguição policial ao grupo como se elas fossem uma ameaça às vidas humanas. Mesmo propondo-se a desobedecer e destruir propriedades como forma de fazer-se perceber, todas as mulheres ali presentes sempre deixaram claro sua intenção de não ferir ninguém. E a violência policial nas manifestações do filme em Londres choca, mas choca ainda mais se pensarmos que elas continuam se repetindo nas periferias e manifestações sociais brasileiras até os dias de hoje.
Mas o filme tem problemas sérios. Segundo o texto escrito por Jaimee A. Swift, publicado originalmente no site For Harriet e traduzido e publicado no site Geledés, o filme desconsidera questões referentes ao feminismo negro. Em primeiro lugar, teria desconsiderado o papel de mulheres negras que integraram ou caso quisessem ter ingrado o movimento sufragista na Inglaterra, sendo Londres a cidade com maior população negra do país. Além disso, na campanha de divulgação, as atrizes utilizaram uma camiseta com a frase de Emmeline Pankhurst “prefiro ser uma rebelde do que uma escrava”, desconsiderando totalmente o papel opressor de mulheres e homens brancos com a população negra desde a época escravocrata, tendo a Inglaterra uma participação grande nesse processo. Logo, o filme ignora a atuação política de qualquer mulher que não seja branca naquele contexto, apagando a história de outras tantas que militaram por seus direitos, que não eram necessariamente o de voto.
O filme oscila em demonstrar relações referentes à luta de classes. Por um lado, é bem sucedido ao mostrar os privilégios da mulher rica, que mesmo militante, continua tendo a família e a casa como segurança. Já a operária precisa ir dormir em uma igreja após perder o marido e a guarda do filho ao se tornar uma sufragista. Porém, por outro lado, o filme beira quase uma inocência ou total desconsideração com a opressão entre mulheres. Maud sente-se culpada por deixar a filha da amiga trabalhando na fábrica (onde é violada pelo patrão) e vibramos quando ela salva a menina dessa situação terrível, porém, ela leva a garota para trabalhar de empregada da sua amiga rica. Claro que, no filme, essa situação pode soar aliviante porque sabemos da violência terrível que a menina vive na fábrica, mas ao mesmo tempo, Maud a leva para outra situação de opressão não emancipatória que é a de ser empregada da mulher rica. E a literatura e o cinema mostram a quantidade de violências que as empregadas domésticas já passaram dentro da casa de seus patrões. Ok, temos que considerar que o filme é baseado em um livro e essa seria a “história”, mas ao filme caberia sim o papel de problematizador dessa situação: a mulher oprimida por um lado pode oprimir por outro, e o longa nem sempre parece se preocupar com essas questões.
Logo, As Sufragistas é um filme delicado por apresentar defeitos que ferem a luta por um feminismo interseccional e respeitoso quanto ao lugar de fala de cada mulher dentro da pirâmide social. Ainda assim, é bem sucedido por mostrar uma campanha no cinema que reflete uma realidade: mudar algo, sendo mulher, nunca é fácil. E se ali vemos uma luta desesperada pelo sufrágio, ao olhar para o lado vemos lutas desesperadas para mudar outras realidades: luta pelo aborto, luta por creches, luta por uma legislação mais punitiva em casos de violência doméstica, entre tantas outras. E para mudar tais leis feitas por homens e para homens, o caminho é longo, e a ação, necessária e transgressora.
Link para o artigo de Zita Abreu:: http://repositorio.uac.pt/bitstream/10400.3/380/1/Zina_Abreu_p443-469.pdf
Link para o texto do Geledés: http://www.geledes.org.br/mulheres-brancas-ainda-nao-sabem-tratar-do-feminismo-interseccional/
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