Fotos: Áquila Paz da Rosa
Caso eu o fotógrafo estivéssemos chegado minutos antes, teríamos visto o pôr do sol, nos diz a agora doutora Camila Doval. Foi do alto do Centro Histórico, diante de uma vista privilegiada, no 11° andar, que a pós-graduada em Letras (Pucrs) falou sobre a tese apresentada recentemente: Mulheres escritas por mulheres: personagens femininas no romance brasileiro contemporâneo (2000 – 2014), com orientação da professora Sissa Jacoby. A intenção da pesquisadora era saber se as personagens femininas escritas por mulheres têm contribuído para o projeto de emancipação das mesmas. Após muito estudo, leitura, análise, inseridos em um recorte bastante específico, o resultado: negativo.
Observando os termos propostos pelo movimento feminista brasileiro e levando em consideração o que se deduz ser uma perspectiva feminina do mundo social, Camila analisou dez obras. Adotou como critério escritoras que tivessem nascido depois dos anos 1970, publicado ao menos dois romances e que pelo menos um deles fizesse parte do catálogo de alguma das editoras consideradas influentes.
Além disso, consta na pesquisa a divisão da análise em dois eixos temáticos: o corpo e os espaços que permeiam os romances e são discutidos pela crítica como fundamentais tanto para o projeto feminista quanto para a literatura de autoria feminina. São eles: Sinfonia em branco (Rocco, 2001), de Adriana Lisboa; Calcinha no varal (Companhia das Letras, 2005), de Sabina Anzuategui,; A chave de casa (Record, 2007), de Tatiana Salem Levy; Algum lugar (7Letras8, 2009), de Paloma Vidal; O pau (Rocco, 2009), de Fernanda Young; Suíte dama da noite (Record, 2009), de Manoela Sawitzki; Paisagem com dromedário (Companhia das Letras, 2010), de Carola Saavedra; Meu coração de pedra-pomes (Companhia das Letras, 2013), de Juliana Frank; Todos nós adorávamos caubóis (Companhia das Letras, 2013), de Carol Bensimon; e A menina de véu (Rocco, 2014), de Natália Nami.
Como forma de demonstrar didaticamente sua conclusão, Camila estabeleceu uma divisão em três categorias a fim de enquadrar a contribuição de cada personagem ao projeto feminista: 1) as acomodadas; 2) as ousadas e 3) as transgressoras. As primeiras “encontram-se estagnadas (por recusa ou impedimento), permanecendo vinculadas a uma representação estereotipada e consequentemente redutora do sujeito feminino”. As ousadas teriam em comum a particularidade de encontrar-se em trânsito (viagem ou busca interna por mudança de condição). São “as que tiveram coragem de dar um passo em direção ao fora do estereótipo, no entanto, para nenhuma delas tal iniciativa de liberdade chega a significar uma ruptura concreta do padrão geral seguido pelas personagens femininas”. Já as transgressoras formam o grupo daquelas que, “por determinados aspectos, como a autonomia das decisões e a linguagem ressignificada no âmbito da narrativa, diferenciam-se do lugar comum das personagens femininas”.
Na tese, não quero saber se elas são feministas ou não. Busco nas personagens, uma consciência de autoria. Como elas estão se representando”
Camila salienta que levou em consideração as personagens – e não os romances – para estabelecer as categorias. Ela os dividiu da seguinte forma: acomodadas (Suíte dama da noite, A menina de véu, O pau e Meu coração de pedra-pomes); ousadas (A chave de casa, Algum lugar, Todos nós adorávamos caubóis e Paisagem com Dromedário) e transgressoras (Sinfonia em branco e Calcinha no varal). Lembrando que Camila levou em conta a complexidade de cada romance, assim como pontos altos e baixos de cada um. “Na tese, não quero saber se elas são feministas ou não. Busco nas personagens uma consciência de autoria. Como elas estão se representando”.
Pergunto à Camila se ficou decepcionada com a conclusão da tese. A resposta manifestou-se, primeiramente, em sua expressão, para depois, “no geral, não achei bom”. A pesquisadora conta que esse, aliás, foi o ponto alto da banca. As professoras Márcia Helena Saldanha Barbosa (UPF), Susana Bornéo Funck (UFSC) e Tânia Regina Oliveira Ramos (UFSC), que integraram a mesa, gostaram do trabalho, porém discordaram do resultado. “Elas disseram que fui muito severa dizendo que estas personagens ‘não contribuem’ para um projeto de emancipação.” Por isso, Camila deve repensar tal severidade, que, no entender das professoras, foi mais social do que literário. A propósito: a segunda parte da tese, intitulada A segunda mulher está nos textos: discurso crítico feminista e autoria feminina é uma aula de 92 páginas sobre a crítica feminista literária, um apanhado consistente para compreender esse estudo no Brasil.
A pesquisadora aponta em determinadas obras a ausência do empoderamento, da emancipação. “Mas tenho consciência de que as escritoras não têm obrigação disso, nenhum escritor tem. Cada um escreve o que quer”.
O resultado categoricamente negativo se impõe, explica Camila, porque ela foi pressionada pelas normas e regras da academia. “Se eu estou escrevendo uma tese, preciso apresentar uma que se comprove. Não poderia deixar o resultado em aberto, ‘creio que umas contribuem, outras, não’. Eu precisava ter uma definição, embora eu não acredite nisso”.
Mesmo assim, a pesquisadora diz que há autoras, por exemplo, que ainda lançam mão da lógica do conto de fadas, que promete à mulher um final feliz, após esta se dedicar a uma espera. “Isso é tão batido. Ou [a personagem] é a que aguarda ou é a louca do sótão”, lamenta Camila, enquanto procura acalmar os latidos da atenta vira-lata Lupita contra a movimentação do fotógrafo no apartamento. Desde o final do ano passado, ela é a mais nova integrante da casa.
A crítica feita pela pesquisadora é em relação às personagens, não às autoras ou ao projeto literário de cada uma, é um recorte; essa é a observação que Camila fez questão de ressaltar no trabalho e na entrevista ao Veredas. Ela aponta em determinadas obras a ausência do empoderamento, da emancipação. “Mas tenho consciência de que as escritoras não têm obrigação disso, nenhum escritor tem. Cada um escreve o que quer”. Camila conta sobre a leitura de livros dos quais não aprova a atitude das personagens, mas gosta da obra por ser bem escrita. “Tenho que aprender a separar as coisas”.
Não cabe mais só denunciar. É preciso ter atitude
A tese Mulheres escritas por mulheres: personagens femininas no romance brasileiro contemporâneo (2000 – 2014) inaugura, para Camila Doval, sua carreira como crítica feminista. Sendo assim, quero saber se ela sente que a academia está preparada para receber pessoas desta linha. O relato da pesquisadora dá conta que, durante os seis anos em que estudou na Pucrs, não foi oferecida nenhuma disciplina sobre crítica feminista, pelo menos não oficialmente. “Cansei de pegar roteiro de disciplina e não ter uma mulher. Ocasiões em que o professor dividia os livros para leitura, e era uma escritora que sempre sobrava, ninguém queria lê-la”. Alguns de seus primeiros contatos com leituras feministas foi com sua futura orientadora, Sissa Jacoby, no grupo de pesquisa sobre autobiografia de mulheres que Camila participou.
Eles escrevem, estudam teorias, leem críticos. Conhecem mulheres, colegas, as amigas. Teriam condições de criarem personagens mais interessantes, mas muitos se negam. Então tu pegas um livro novo, recente e ali estão os estereótipos femininos de sempre
Pode-se inferir que a ausência deste tipo de discussão na academia reflete uma leitura limitada ou estereotipada da mulher retratada na literatura e nas obras produzidas por elas. Camila conta, por exemplo, o que observa entre alguns colegas escritores que cursam doutorado em Escrita Criativa. “Eles escrevem, estudam teorias, leem críticos. Conhecem mulheres, colegas, as amigas. Teriam condições de criarem personagens mais interessantes, mas muitos se negam. Então tu pegas um livro novo, recente e ali estão os estereótipos femininos de sempre”. A pesquisadora não generaliza, contudo afirma que costuma ser essa a situação. “Mas, claro, tu não tens como invadir o direito da pessoa de escrever o que ela quer, ainda mais se fizer sucesso e vender”.
Apoiada na fala da crítica feminista Rita Terezinha Schmidt (leia aqui a entrevista que ela concedeu ao Veredas), Camila lembra que a mulher está na representação e é gerada por ela. “Quando se escreve o romance, e eu leio, aquilo também me devolve alguma coisa. E tu vês sempre a mesma abordagem, o mesmo personagem, o mesmo final. Isso é muito cruel com as mulheres”, queixa-se Camila. Ao mesmo tempo, a pesquisadora concorda que a mulher também fala de filhos, maternidade e tudo aquilo que faz parte de seu universo, mas, curioso que isso não é questionado na literatura produzida pelo homem, quando ele coloca no texto anseios próprios do seu gênero.
Lá fora, enquanto a iluminação da cidade surge aos poucos avisando que já é noite, Camila divaga, explicando que, durante suas análises, avaliou detalhadamente cada romance. Observou que, em geral, os livros são bons, trabalham com a subjetividade feminina, fazem denúncias. Mas, quando enxergou o todo, a sua sensação não era a de terem dado um passo à frente. “As denúncias estão ali: falam sobre abuso, aborto, relações frustradas, machismo. No entanto, penso que estamos em 2016. Não cabe mais só denunciar. É preciso ter atitude”, critica.