Escritoras periféricas no centro da margem

veredas-banner-300x300px (1)Ana Patrícia Ferreira Rameiro (PA) é escritora, parda, tem 30 anos de idade e é assistente social. Ultimamente não tem frequentado saraus literários “por contingências da vida e outras dedicações urgentes”. Teve um livro de contos premiado em um concurso literário regional (2013), além de um conto publicado em uma antologia de contistas paraenses (2015).

Além de Ana, outras escritoras como a estudante Ravena do Carmo Silva (DF), a professora Dalva Maria Soares (MG), a livreira Ágda Caroline Silva dos Santos (RR), a poeta Regina Azevedo (RN), a jornalista Paula Mariá (PR) e a psicóloga Taiasmin da Motta Ohnmacht (RS) podem ser encontradas no Margens. São muitas. Ao todo, desde 2014, cerca de 400 mulheres foram mapeadas pela iniciativa que pretende identificar a presença e a participação delas na Literatura Marginal Periférica (LMP)* brasileira.

O site, criado, elaborado e mantido de forma independente por Jéssica Balbino, é parte de seu projeto de mestrado em Divulgação Científica e Cultural do Labjor (Unicamp). O objetivo é saber quem são estas mulheres. “A pesquisa vem para responder isso na prática. O Margens é o acesso ao trabalho, é o rompimento dos muros da academia com a rua, com as periferias, com a literatura”, explica.

Na realidade, são as próprias mulheres que se automapeiam no questionário disponibilizado no site do Margens, indagando a etnia, idade, profissão, se participam ou não de saraus, entre outros dados. Tal possibilidade permite que escritoras, produtoras culturais, líderes comunitárias envolvidas com a literatura revelem seu protagonismo e a autorrepresentação.

Isso se mostra fundamental, pois, assim como o campo literário letrado, a LMP também é marcada pela significativa presença masculina. Sendo assim, a ideia do automapeamento surgiu para fortalecer o pertencimento. “E também para ampliar, para me dar a chance de conhecer outras escritoras além das que eu já tinha decidido trabalhar”, conta a pesquisadora.

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Site Margens faz um mapeamento de escritoras de literatura marginal no Brasil

Apenas para citar um exemplo, das 72 publicações da LMP catalogadas até 2011 pela antropóloga Érika Peçanha do Nascimento em sua tese de doutorado, 12 são produções femininas, quatro delas em coautoria.  Além disso, especialistas identificavam, no início do Movimento**, algumas representações antiquadas ou estereotipadas da mulher, como aquelas confinadas ao âmbito doméstico, destinadas à maternidade e à passividade, ou ainda como objeto de desejo. Mas, conforme a idealizadora do Margens, o cenário está mudando aos poucos. Antologias inteiras com textos de mulheres são cada vez mais comuns.

O Veredas conversou com Jéssica Balbino, que, desde o ano 2000, pesquisa a LMP. Ela é especializada em jornalismo literário/digital e comunitário, produtora cultural com vivência intervenções, cursos e saraus. Já escreveu para veículos especializados como Portal e revista RAP nacionalViva favela, e para o número especial da Revista da Cooperifa. Autora dos livros Traficando conhecimento (Aeroplano, 2010) e Hip-Hop: A cultura marginal (Independente, 2006), além de participar como coautora de diferentes obras vinculadas à literatura marginal e ao hip-hop. Não é à toa que entre tantas atividades, Jéssica conta que “anda correndo contra o tempo, porque já era pra ter terminado” o seu trabalho de mestrado.

Abaixo, o relato completo da pesquisadora sobre a sua experiência e impressões do projeto Margens.

* conceito cunhado pela antropóloga Érika Peçanha do Nascimento, pioneira em estudar o movimento em sua tese de doutorado: É tudo nosso! Produção cultural da periferia paulistana (Programa de Pós-graduação da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo). http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8134/tde-12112012-092647/pt-br.php

** esta entrevista tomou como referência passagens do artigo A voz e a letra da mulher na literatura marginal periférica: figurações e reconfigurações do eu, de Lucía Tennina. (Espaço e gênero na Literatura Brasileira Contemporânea (org. Regina Dalcastagnè e Virgínia Maria Vasconselos Leal, Editora Zouk).

A pesquisa faz parte do projeto de mestrado de Jéssica Balbino (Foto: Marilda Borges e Evandro Borges/Sarau Suburbano)
A pesquisa faz parte do projeto de mestrado de Jéssica Balbino (Foto: Marilda Borges e Evandro Borges/Sarau Suburbano)

Veredas – Percebe se as mulheres sentem dificuldade em se assumir como escritoras? Não apenas por meio deste projeto, mas dos demais eventos que você participa?

Jéssica – É um processo. Quando eu comecei na cena, quase não havia mulheres que escreviam ou que se assumiam como tal. Com o passar dos anos, aumentou o número de mulheres, da participação delas em antologias e mais, de publicações próprias. No entanto, esse número ainda é inferior ao de homens na literatura marginal e, por conseguinte, nos saraus e tudo mais. O que eu percebo é que as mulheres seguem invisibilizadas. Muitas delas já se assumem como escritoras, têm livros lançados, mas não são convidadas de destaque. Os lugares permanecem ocupados pelos homens. Vejo ainda que em muitos saraus, as mulheres produzem tudo, mas os louros ficam com os apresentadores – normalmente homens. Porém, vejo um movimento que vem para mudar isso. As mulheres estão retomando seus espaços.

VeredasEm seu trabalho, considera escritora quem publica, quem escreve ou quem lê textos nos saraus?

Jéssica – Trabalho com mulheres que são slammers*, mas que ainda não publicaram nada. Com as que fazem fanzines e com aquelas que têm livros publicados (poesias e romances).

(* Slam é a maneira informal de chamar o Poetry Slam ou Spoken, uma competição de poesia falada. No Brasil, a principal referência é a Roberta Estrela D´Alva, que foi quem criou o Zona Autônoma da Palavra (Zap), o primeiro slam brasileiro, e inspirou outros. O ator e poeta Emerson Alcalde também faz um trabalho bastante importante nesse sentido.  “Atualmente temos mulheres muito boas também, que têm se destacado bastante, como a Mariana Félix, que está para lançar o primeiro livro. No ano passado venceu três deles e chegou à final brasileira.”. A história do slam começou em 1984, em uma escola de Chicago, nos EUA. Foi o primeiro campeonato de poesias julgado pelo público).

Veredas –  Qual foi – ou ainda é – a maior dificuldade de manter uma proposta como o Margens?

Jéssica – Ser mulher é a principal dificuldade. Isso já define quais portas serão abertas e quais terão que ser arrombadas, porque fechadas elas não vão permanecer.

Veredas Em relação ao Margens, você estuda, ou pretende estudar, aquilo que é produzido pelas mulheres?

Jéssica –  Eu pesquiso a literatura feita por mulheres da periferia, isso inclui todo tipo de arte literária, não apenas livros, mas os slams, saraus, músicas (em alguns momentos), arte na rua, lambes, etc. No entanto, o mestrado é restrito à literatura. Pode ser que mais adiante eu avance na proposta. Mas, como o Margens é sobre mulheres, é natural que outros assuntos inerentes a este universo apareçam.

VeredasAlém do mapeamento das escritoras, você também faz um rastreamento de saraus. É possível notar onde estes eventos estão mais presentes? O que influencia na frequência ou quantidade de saraus numa cidade?

Jéssica – A palavra não seria rastreamento, mas mapeamento também. Eu comecei este projeto em 2013, mas por causa do mestrado, dei uma pausa. É uma vontade antiga: criar um mapa com os saraus que existem no Brasil. Eles são maioria em São Paulo (SP), que foi onde esta retomada de saraus, no formato em que eu trabalho (feitos por pessoas da periferia, em ambientes comuns etc), se fortaleceu. Depois, vem o RJ e capitais como Belo Horizonte e Salvador. Mas temos uma cena forte em Aracaju, por exemplo.

O que eu noto é que surgem muitos saraus, porque fazer sarau tornou-se algo cult, algo da moda, algo bom para conquistar dinheiro de editais. Só que estes eventos não se sustentam, não estão enraizados com a proposta e perdem-se no meio do caminho. Então, surgem muitos saraus, mas muitos não passam das primeiras edições, outros não passam dos primeiros anos, e por aí vai. Para mim, o que influencia a frequência em um sarau é: coerência com a proposta e poesia.  O restante é bla-bla-bla.

Veredas – O mapeamento feito hoje no site será mantido, independentemente da pesquisa?

Jéssica – Pretendo manter sim!

Veredas – De 2000 para cá, você chegou a perceber mudanças significativas sobre a participação da mulher na LMP, tanto na escrita quanto em saraus?

Jéssica – Acho que mudou muito, sim. As mulheres não participavam, agora, elas criam antologias 100% femininas, fazem tudo sem a participação masculina. Acho que a representatividade, a consciência e a participação aumentaram muito. O que a gente precisa perceber é que não é apenas uma escolha da mulher participar ou não dos saraus. A mulher tem sempre muitas atribuições. Muitas vezes ela não consegue dar conta de ir ao sarau porque trabalha fora, cuida da casa, dos filhos, dos estudos. Sobra que tempo, sabe? São vários fatores que influenciam nisso. Aí quando ela vai, é oprimida pela presença masculina, pelo cara que vai no sarau para passar a mão na bunda dela, por vários fatores, que fazem ela se afastar da cena. É bem mais complexo do que apenas ir lá e declamar ou publicar um livro.

Veredas – Sabe-se que na LMP, e não apenas neste universo, a presença do homem ainda se sobrepõe à da mulher (número de publicações, saraus). Você faz este levantamento no teu estudo?

Jéssica – Faço sim! No primeiro que fiz em 2014, a participação masculina ainda era 22% superior que a feminina em publicações, no entanto, isso deve estar diferente agora.  Mas os dados só serão divulgados mesmo no final da dissertação.

Veredas- Como elas lidam com esta desigualdade?

Jéssica – Como eu disse acima, são vários fatores que contribuem para a presença das mulheres ainda ser menor na cena. A mulher é oprimida desde sempre e em todas as situações. Ela vai no sarau, dá o nome pra recitar, mas o apresentador não a chama, alegando que não deu tempo. Neste momento, ela se sente preterida. Isso a afasta, por exemplo. Cria-se uma antologia de um sarau, mas 90% dos participantes são homens. Na foto, só aparecem homens.

Ela tem que cuidar de casa, trabalho, filhos e marido. E aí, depois disso tudo e esgotada, ela consegue ir ao sarau. Que tempo ela tem para criar? Para participar das decisões? Para protagonizar? Percebe? As condições não são as mesmas, nunca. A única forma de lidar com isso é lutando.

VeredasConforme percebe-se no mapa do Margens, é na região sudeste onde está concentrado o maior número de escritoras da LMP. É uma avaliação equivocada, já que o Brasil está repleto de periferias que, por sua vez, devem ter suas escritoras?

Jéssica – O que ocorre é que a maior parte dos saraus está em São Paulo, a maior cidade do Brasil, logo, é natural que as coisas aconteçam mais lá. E no sudeste, por conseguinte. É claro que as periferias existem no Brasil todo, no entanto, nem todas elas possuem saraus e nem todos saraus possuem mulheres que escrevem. Por isso também o mapeamento foi aberto e disponibilizado a quem se identifica como escritora. Agora, é impossível percorrer um país do tamanho do Brasil e bater de porta em porta das periferias para saber se lá há alguma escritora.

Veredas – No caso das escritoras da LMP, as mulheres sofrem exclusão de classe e de gênero. Isso fica explícito na produção delas?

Jéssica – Muito. Os temas de gênero, classe social e posicionamento são os que mais aparecem nas obras. E é isso que caracteriza também a literatura como marginal e periférica.

Veredas – Poderíamos afirmar que a literatura produzida por elas é mais política, combativa? Ou arriscamos generalizar, pois devem existir muitos perfis?

Jéssica –  Ela é também política e combativa, mas não é só isso. É claro que isso a caracteriza, como eu disse na questão anterior. É uma das vertentes da literatura marginal/periférica retratar o que estamos vivendo neste momento. Ela é bem mais real e fiel ao que acontece do que subjetiva. É claro que estas mulheres falam de amor, de vivências etc. Mas o posicionamento político e no mundo é o traço mais forte.

Veredas – Como a comunidade em questão lida com as suas escritoras? Eles as reconhecem?

Jéssica – Em alguns casos sim, outros não. Isso é muito específico. A escritora que tem um trabalho na comunidade onde vive é naturalmente reconhecida. A que não tem talvez passe despercebida.

Veredas – Falando em reconhecimento: e a crítica, de maneira geral? Tem voltado os seus olhos para a LMP? Existe uma crítica especializada na LMP e sobre o que é produzido pelas mulheres?

Jéssica – Acho que o próprio nome: marginal e periférico também define isso. Está às margens. Ninguém se interessa. Todas as críticas “especializadas” são provenientes de pessoas ligadas a isso, o que também é bom, porque existe propriedade para falar sobre. Quando não for, haverá cooptação e não é o que queremos.

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Jornalista freelancer na área cultural e graduanda no Bacharelado em História da Arte (Ufrgs) e escritora. É autora do livro de contos “Como se mata uma ilha” (Zouk, 2019).
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