Por João Vicente Ribas
Domingo à noite. Sala de estar. Fantástico. Estamos lá. Pouca luz. Não aquela que sai da tela e ilumina o rosto. A de abajures e mangueiras de led, que nos ajudam a enxergar os músicos. Nada de palco. No contraplano, pode-se cantar, brincar e até participar. Zero passividade.
Nos últimos finais de semana retornou a Porto Alegre um show que rodou o Brasil durante nove meses. Foram mais de 20 cidades a bordo de um carro tipo perua, com reboque, financiado diretamente pelo público (mais de mil apoiadores). Em cada parada, a sala de algum espectador tirava a televisão do centro. Quem comprava ingresso antecipado, garantia um dos poucos banquinhos que cabiam a cada sessão e multiplicava o público. Num domingo, estive na plateia da Casa Frasca, lugar escolhido pela Apanhador Só para receber a turnê aqui no Sul.
A banda gaúcha levou a sério o modo de produção independente. No ano passado realizaram a campanha de crowdfunding e arrecadaram mais de cem mil reais para esta turnê. Agora é hora de vender a parafernália para gravar o terceiro disco da carreira. Com financiamento coletivo e atuação intensa no circuito nacional, entre uma música e outra durante o show, bradaram orgulhosos de sua condição, que lhes livra de qualquer concessão. Pois, não tem um logotipo no cantinho da capa do disco. Por outro lado, não estão juntando recursos para acumular patrimônio. O papo é reto: compra carro, viaja em turnê, vende carro, grava disco. Então, inicia-se um novo ciclo.
É amiguinhos, a malfadada liquidez pós-moderna não resulta apenas em corações partidos, instabilidade emocional e insegurança. A fluidez também pode adjetivar nosso tempo de relações e de arte sem antigas amarras conceituais, cobiça ou dívidas patrióticas. Um ir e vir tribal, coletivo e desapegado. Apesar que seria inocente falar em rupturas e novos tempos que enterram por definitivo o passado… portanto não entendamos desta maneira. Sabemos que ninguém está inventando a roda. Mas não é todo mundo que sai rodando quilômetros com equipamento rebocado, pra chegar na casa de novos amigos, se instalar na sala e tocar umas canções. Tudo isso com evidente profissionalismo.
Novo disco
Durante o show da turnê, baseado no repertório dos primeiros discos, pudemos distinguir momentos variados musicalmente. Em um, a banda inteira canta, toca instrumentos de sucata, produzindo catarse instantânea junto à plateia. Noutro, a canção, esta dádiva da cultura ocidental, brilha e evidencia os talentos individuais. Alexandre Kumpinski empresta a voz e as intenções precisas ao violão. Felipe Zancanaro costura as harmonias com timbres e frases tão caprichadas que se tornam inseparáveis das melodias – seja empunhando uma guitarra, programando uma engenhoca super-moderna ou batucando com uma faca em um aro de bicicleta. Fernão Agra, minimalista, é o chão da banda, ao contrabaixo, aos teclados. E assim por diante, com a competência dos músicos de apoio.
Por parte do público, duas experiências intensas. A participação, o cantar, a festa. Também a introspecção, a fruição, o prazer da audição. Será que o terceiro disco, que começa a ser gravado a partir de agora, irá proporcionar ambas curtições? E os temas? Durante o show, o vocalista anunciou antes de tocar “Mordido” que tinha voltado a ter ganas de apresentá-la, devido à conjuntura no país. “O teu esquema sempre foi lograr/ Criar uma imagem boa pra vender/ Na captura do nosso querer/ Tá conseguindo é nos provocar”. Uma pista sobre as inspirações atuais?
Venha o que vier, os fonogramas que a banda irá gravar estão cercados de expectativa. Se a qualidade de produção dos primeiros discos se repetir, já será ótimo. Se continuarem amadurecendo, livres para criar, sem deixar de lado o espírito de uma banda de rock, seguirão “tirando o sofá da sala”. Só a experiência desta turnê Brasil afora, com certeza já garantiu inspiração suficiente.
Hora de bater no peito e agradecer à plateia: “alguém aí quer comprar um carro?”