O Observatório de Censura à Arte é um projeto do Nonada voltado a mapear os casos de censura às expressões artísticas no Brasil desde o episódio do Queermuseu, escolhido como marco devido à repercussão emblemática. Até 2022, 70 casos de censura direta estão registrados no relatório.
Enquanto na época da ditadura militar, um órgão do Estado era responsável pelo cerceamento, atualmente a censura se manifesta a partir de agentes de diversas instâncias de poder e de autoridades públicas e de empresas privadas, uma vez que a censura ocorre na esfera pública ou nela repercute. Desta forma, há casos no Observatório acionados por prefeitos, parlamentares, juízes, policiais civis e militares, gestores culturais de espaços públicos e privados, cidadãos. Os casos mais notórios são de responsabilidade de órgãos do governo Federal, que desde o início da gestão de Jair Bolsonaro (sem partido) vem construindo uma antipolítica cultural.
Idealizado para ser uma fonte de informações para artistas, jornalistas, pesquisadores e demais pessoas interessadas, o Observatório foi tema de matérias em alguns dos principais veículos de imprensa do país e de diversos artigos acadêmicos desde então. Uma análise aprofundada dos casos indica pontos que se repetem, como a constante pressão de políticos conservadores nas redes sociais pela censura de determinadas obras. Até mesmo o secretário especial de Cultura, Mário Frias, foi um desses agentes ao exigir o cancelamento de uma live com temática LGBTQI em Santa Catarina ainda em 2021.
Chama a atenção também o fato de que a grande maioria dos casos de censura – cujas denúncias são jornalisticamente checadas pela equipe – compartilharem temas ou pautas sociais. As temáticas mais censuradas conforme os registros do Observatório são justamente obras LGBTQI (18 casos), seguidas de obras feministas (7 casos), antirracistas (6 casos) e com críticas ao governo Bolsonaro (7 casos). Outra informação importante é a existência de registros em todas regiões do país, de norte a sul, o que demonstra que as ações não são isoladas.
Para delimitar o conceito de censura que baliza a edição do projeto, nos baseamos nos critérios enumerados pela socióloga Maria Cristina Castilho Costa, professora da Escola de Comunicações e Artes da USP e coordenadora do Observatório de Comunicação, Liberdade de Expressão e Censura da USP:
1. A censura é um ato que visa alterar, modificar, silenciar, interditar manifestações de produção simbólica – livros, revistas, charges, encenações teatrais, músicas, danças, pintura, desenho, notícias, conteúdos digitais, games.
2. Esse ato tende a fazer com que o público, a quem a obra se destina, seja privado de seu conteúdo, como desejado pelo(s) autor(es) e seu público;
3. É preciso que o ato censório se dê no espaço público ou nele repercuta. Quando um jornalista é impedido de publicar suas ideias diferentes das da direção da empresa para a qual trabalha (editorial), o jornal está impedindo que tais interpretações dos fatos se divulguem ao público leitor;
4. A censura atua de forma a inibir certos conteúdos, sua menção ou defesa, sua discussão, buscando apagar interpretações da realidade não oportunas a certos grupos. Tende também a promover a autocensura. Isso significa que a principal motivação do ato censório e que o caracteriza é seu cunho ideológico;
5. Os atos censórios tendem a ser justificados por razões morais e éticas, sempre vistas como universais e não históricas. Tendem também a ser considerados como forma de proteção a minorias, sejam elas crianças, mulheres, grupos étnicos ou em situação de risco;
6. A censura sempre explicita a interpretação de mundo que se torna inconveniente, indesejável e que se deseja silenciar;
7. O mais importante: o mundo que os atos censórios dizem defender não existe. Não há ideologias hegemônicas e sem dissidência, não há sociedade com relações afetivas, sexuais e familiares modelares, mas muitos arranjos pessoais, improvisados, dissidentes, inusuais, que assinalam para tendências de uma sociedade em movimento e em transformação;
8. A censura, onde quer que se manifeste, é sempre política, tem a ver com o exercício do poder, com privilégios, com dominação. Como afirma Pierre Bourdieu, as trocas simbólicas são um espaço de prática do poder. Por isso, mais uma vez, ela é histórica, temporal e datada. Dessa forma, qualquer tentativa de criar critérios supra-históricos é falsa.
Fonte: Isto não é censura – a construção de um conceito e de um objeto de estudo, de Maria Cristina Castilho Costa (2016)